Pacotinho com The Jesus And Mary Chain

 

 

Não dá pra negar que The Jesus And Mary Chain é uma das bandas mais importantes da história recente do rock dito alternativo. Surgida no início dos anos 1980, composta pelos irmãos Jim e William Reid no comando pensante e artístico da coisa, a dupla se notabilizou pela fidelidade quase religiosa a dois parâmetros básicos: a microfonia caótica em seus arranjos e a total devoção por mestres da psicodelia não-feliz do passado, a saber, Velvet Underground, The Doors e outros bichos assim. A mistura dessas duas vertentes de som causou combustão instantânea em discos como “Psychocandy”, lançado em 1985, marcando a estreia dos sujeitos. A partir daí, o rock britânico foi e veio em vários movimentos e tendências, mas os irmãos Reid seguiram em frente, lançando poucos e ótimos álbuns de tempos em tempos, praticamente alheios ao que se fazia. Hoje, em pleno 2022, há rumores de que eles estão em estúdio preparando o sucessor de “Damage And Joy”, sétimo trabalho, lançado em 2017 após um hiato de 19 anos, sucedendo a “Munki”, de 1998. Talvez para aquecer as turbinas, William e Jim tenham escolhido relançar um álbum ao vivo comemorativo, de 2014 e uma versão de luxo para “Damaged And Joy”, ambas chegando juntas ao mundo justo hoje, dia 20 de janeiro de 2022.

 

 

O tal disco ao vivo é arrasador e deve ser ouvido por você imediatamente. Gravado em 2014, “Live At Barrowland” mostra a dupla tocando numa casa de shows pequena, nas vizinhanças de onde os irmãos Reid nasceram e cresceram, nos arredores de Glasgow. Ou seja, é um misto de celebração, ajuste de contas e amor, materializado na execução da íntegra de “Psychocandy” e outras sete canções, entre clássicos de outros álbuns como “Head On”, “April Skies”, “Up Too High” e até de singles obscuros, como a própria “Psycho Candy”. Sem tempo para saudar a plateia e/ou conversar com ela, os Reid ligam seus amplificadores e jogam o que parece ser a chegada de uma frente fria em termos sonoros, com apitos, assovios e guinchos guitarrísticos, que percorrem todas as faixas, sem tempo para que o ouvinte se dê conta exatamente do que está acontecendo. É como se o caos estivesse instaurado e algo o ordenasse minimamente, mantendo-o desejável e irresistível. Não dá pra descrever a sensação de ouvir um “good night” entredentes e, logo em seguida, perceber a entrada da bateria para executar “Just Like Honey”, com todo o seu peso e doçura subjetivos e subentendidos. A audição, repito, é obrigatória.

 

A versão de luxo de “Damage And Joy” é pouco ortodoxa, por assim dizer. Mas, para falarmos dele com mais propriedade, recordo aqui o texto que fiz quando o álbum, produzido por Youth, foi lançado, em março de 2017, para o Monkeybuzz.

 

O Rock, senhoras e senhores, moças e rapazes, não morreu. Tampouco está no mundo dos vivos. O redivivo The Jesus And Mary Chain tem a resposta para este questionamento que nos assalta de quando em quando. Os irmãos Reid cantam logo na primeira faixa de seu novíssimo Damage And Joy, Amputation: “I’m a rock’n’roll amputation”. É isso, o estilo que acenou com possibilidades variadas em campos distintos da cultura do século passado, ficou pra trás em alguma curva do caminho até aqui. Carregar o rótulo ficou pesado a tal ponto de deboche/ironia/sentimento da dupla escocesa cair como uma luva na situação que temos hoje: dois cinquentões, voltando de 19 anos sem lançar um álbum de canções inéditas, se sentem como uma “amputação rock’n’roll”. É pra se pensar e para olhar o tanto de fãs de “Classic Rock” xenófobos, racistas, preconceituosos e fascistas que temos por aí. Felizmente, nenhuma dessas palavras, tampouco o termo “classic rock” cabe no território da corrente de Jesus e Maria.

 

Os mais atentos e com melhor memória hão de comparar tal reflexão com a ainda mais taxativa I Hate/Love Rock’n’Roll, faixas do trabalho anterior do grupo, Munki, de 1998. A postura é a mesma, o humor dos caras também. Este novo álbum, apenas o sétimo lançado pelo grupo desde o início de carreira, lá nos anos 1980, vem cheio de atrativos para os velhos fãs. Os irmãos Reid se reservam o direito de não propor algo absolutamente novo que vá conquistar admiradores adolescentes/jovens de hoje. Apenas quem já é familiarizado com seu combo melodia/microfonia/dias cinzentos há de se sentir em casa e devidamente afofado pelas 14 faixas do álbum. Mas há algumas diferenças entre este e os trabalhos anteriores; o maior deles é a presença de Youth na produção. Pra quem não sabe, ele é um produtor figurão da música eletrônica dos anos 1990 e parceiro ocasional de ninguém menos que Paul McCartney em seu pouco conhecido lado experimental, The Fireman. O outro é a participação de cantoras como Isobel Campbell, Berndette Denning e Sky Ferreira em algumas faixas.

 

A fórmula mágica sonora está intacta. Vocais entediados de Jim Reid, guitarras microfonadas de William Reid, uma bateria eletrônica ou o baterista Brian Young (que toca ao vivo com os irmãos em turnê) e o próprio Youth no baixo. Tal configuração garante os esqueletos melódicos do grupo e ressalta a beleza das melodias que eles conseguem compor. Há algumas verdadeiras pepitas de ouro entre as novas canções que eles oferecem. No caldeirão ainda segue a mesma mistureba de sempre: melodias douradas dos anos 1960, da conexão The Beach Boys/Phil Spector + microfonia + Ramones. No entanto, o tempo fez com que os Reid privilegiassem canções mais tranquilas, nas quais sua receita mágina funciona (ainda) melhor. Este é o caso da bela e teenagefanclubiana The Two Of Us, que traz dueto com Isobel e mostra o quanto a dupla é capaz de forjar uma canção quase atemporal com o básico dos básicos, calcada em um riff milagroso e num refrão que faz surgir um sorriso no rosto do crítico.

 

All Things Must Pass, outra faixa com melodia digna de manual, é mais uma a se destacar. É dessas canções que surgem com pinta de que sempre estiveram aqui, esperando alguém compô-las. Sua audição é totalmente familiar e a impressão é de encontrarmos um velho amigo que não vemos há 20 anos. Em Get On Home surge aquela barulheira característica, que entra pela melodia sem avisar e polui (no ótimo sentido), novamente fazendo o sorriso surgir. A faixa dividida com Sky, a boa Black And Blues também vai pra prateleira de belezuras melódicas, com um pequeno toque psicodélico e aura baladeira, terreno que os irmãos dominam bem, mas no qual pouco se aventuram. A grande balada do álbum é a mediana Los Feliz (Blue And Green), que conta com um arranjo de cordas – isso sim, é uma novidade – e acaba soando como alguma canção que a versão noventista de Echo & The Bunnymen deixou de lado. O fechamento se dá com outra canção semi-baladeira, a bonitinha Can’t Stop The Rock, que traz a presença vocal da irmã dos Reid, Linda Fox.

 

O saldo de Damaged And Joy é bastante positivo. Há motivos de sobra para que ele figure ao lado de todos os outros lançamentos do grupo, cada um com seus méritos próprios e charmes. O deste novíssimo membro da família talvez seja a capacidade do grupo de manter suas características principais intactas e, mesmo soando como sempre soou, conferir aos ouvintes uma refrescante sensação simultânea de familiaridade e ineditismo. Belezura.

 

O que esta nova versão faz é relançar o álbum em vinil duplo especial, com livreto de 16 páginas e mudar a ordem de algumas faixas. Além disso, a faixa ‘Ono Yoko’, antes lançada apenas na versão japonesa do álbum, está disponível, além de versões alternativas de ‘The Two Of Us’, com a cantora americana Sky Ferreira e ‘Black And Blues’, trezendo vocais de Isobel Campbell.

 

Ao todo a carreira do Jesus And Mary Chain é composta por sete álbuns, uma coletânea de lados B e este álbum ao vivo. Juntos eles formam um tijolo de amor e caos arremessado na direção dos seus ouvidos e, te garanto, em alguns momentos da vida, é só disso que você vai precisar.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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