Os trinta anos de “Uma Linda Mulher”

 

 

Eu sou um dos que viram “Uma Linda Mulher” no cinema. Tal fato me coloca na posição privilegiada de poder comprovar que a sua estreia – em julho de 1990, no Brasil – foi um pequeno fenômeno naquela mídia ainda insipiente da virada da década 1980/90. A explicação estava na presença de uma novíssima estrela do cinema americano, que surgia como uma “linda mulher” (trocadilho inevitável), no caso, Julia Roberts, mas seria impreciso colocar em suas costas o peso pela expectativa que o filme gerava. Richard Gere, galã clássico da década de 1980; uma trilha sonora que reavivava a memória do público para a majestade da canção de Roy Orbison, que dava título ao filme (Oh, Pretty Woman), gravada em 1963 e o reempacotamento de uma história equivalente à de Cinderella, eram outros fatores que concorriam para o frisson daquelas férias de inverno de 1990.

 

A direção de Garry Marshall, tradicional responsável por vários filmes bacanas da década de 1990, entre eles, “Frankie e Johnny” (com Al Pacino e Michelle Pfeiffer, de 1991), conferiu ao longa uma aura de fábula moderna, mostrando que tal fato era, na verdade, uma discreta marca registrada de Marshall, que também assinaria “Diários da Princesa”, em 2001, que revelou Anne Hathaway para o público. A verdade é que a personagem de Julia Roberts, Vivian, encarnava várias mulheres daquele início de anos 1990. Espertas, jovens, em vias de experimentar um mundo que mudava em alta velocidade, ela também precisou encontrar alguma atividade que lhe rendesse sustento, neste caso, tornar-se uma garota de programa em Los Angeles. E tal ocupação iria lhe proporcionar o encontro com Edward (Gere), um magnata do setor empresarial, que encarna a figura do yuppie oitentista, mas com um pouco mais de “doçura” e “humanidade”. Sua vida se resume a comprar empresas e organizar suas fusões, descaracterizando-as no processo, algo bem típico daquele mundo neoliberal pré-internet.

 

O encontro dos dois vai revelar um choque cultural, no qual o vetusto executivo se vê às voltas com uma mulher cheia de vida, bem humorada, que irá transformar sua vida. Em troca, Edward poderá, além do amor e do romance, assegurar uma confortável existência para Vivan que, claro, como é uma menina pura e de bom coração, nem para pra se dar conta disso. Aliás, ela e Edward são os únicos que não se assustam com uma “penetra” na alta roda social de Los Angeles. Amigos de ambos começam a temer por todo tipo de preconceito e, claro por um grande golpe do baú. Aliás, entre os camarada de Edward, está um escroque interpretado por Jason Alexander, o Frank Constanza de “Seinfeld”. Em algum ponto da trama, ele irá oferecer dinheiro para ter uma noite com Vivan, aviltando-a e mostrando que, na verdade, ela não passa de uma prostituta, aproveitando uma oportunidade de enriquecer.

 

Olhando hoje, em perspectiva, “Uma Linda Mulher” é mais um desses reflexos de uma sociedade patriarcal e preconceituosa que ainda existe à plena força, mas que, acredito eu, está começando a se transformar. O filme mostra a total dependência das mulheres em relação aos homens e, especialmente em relação ao que estes podem proporcionar em termos materiais e , vá lá, sentimentais. É uma vinculação em que elas podem, no máximo, mostrar um mundo mais colorido e leve, enquanto eles, certamente, proverão dinheiro, status e aceitação social.

 

Sabemos bem que esta visão, hoje em dia, é reveladora de um monte de coisas contra as quais precisamos lutar se quisermos ter uma sociedade mais justa. Assim como várias músicas, livros e outros filmes, “Uma Linda Mulher” ainda oferece entretenimento de qualidade – tem uma trilha sonora bacana, Roberts está, de fato, em ótimo momento – mas não sobrevive a uma discussão um pouco mais aprofundada sobre seus significados. Talvez a habilidade que Garry Marshall tinha de oferecer contornos de fábula a situações “reais” seja um desses reflexos patriarcais que são indesejados desde sempre. De qualquer forma, o longa é um marco no surgimento de toda uma nova safra de comédias românticas nos anos 1990.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *