Os Supridores – a literatura pra quem é de verdade

 

 

Vocês devem ter visto a foto das pessoas em uma fila esperando para registrar óbitos por Covid na Central de atendimento funerário de Porto Alegre, no último fim de semana.

 

Um conhecido que mora na capital gaúcha resumiu aquela cena inacreditável: “nosso povo carente de Estado, sendo moído “.

 

Por coincidência eu terminava de ler “Os Supridores”, do escritor gaúcho José Falero naquele mesmo dia. Na sua estreia como romancista ele deu protagonismo a quem sente na pele o que é ser negligenciado

 

Pedro e Marques trabalham como supridores, repositores de estoque numa filial da rede de supermercados Fênix, localizada na região central de Porto Alegre. Marques é casado, tem um filho e acaba de descobrir que vai ser pai novamente. Pedro mora com a mãe e passa o sufoco diário do transporte público entre o supermercado e sua casa lendo e tentando não dormir.

 

Cansados da exploração do trabalho, vem de Pedro a ideia para se livrarem da vida que nunca trará o dinheiro que eles merecem: traficar maconha, nicho que não interessa aos traficantes das vilas (favelas) onde moram.

 

Tu achas mesmo que a gente não trabalha mais do que o dono desta rede de supermercado? Esse cara nem sequer trabalha, Marques. Mas, mesmo que ele trabalhasse, não ia poder trabalhar tanto, a ponto de merecer o mar de dinheiro que ele tem, enquanto a gente trabalha e trabalha só pra ganhar a quantidade de dinheiro exata pra não morrer de fome e continuar trabalhando e trabalhando.”

 

A coisa dá certo, começam a ganhar dinheiro e a eles se junta Roberto, marido de uma prima de Pedro, Angélica, esposa de Marques, e Luan, ex-colega de trabalho dos dois.

 

O que poderia ser apenas mais uma história sobre jovens pobres em busca de dinheiro rápido e ascensão social, na escrita de José é uma literatura sem moralismo, que fala dos desafios da periferia e a desilusão com o sistema capitalista, principalmente pela visão crítica de Pedro, que o analisa como produtor de desigualdades que interessam aos que podem mais:

 

“Às vezes, avaliando tudo quanto lhe girava em torno, apanhava-se espantado com a quantidade de coisas que, de uma forma ou de outra causavam-lhe descontentamento: os ônibus lotados, as roupas surradas, os cigarros vagabundos, a insuficiência de cobertas no inverno, a falta de um ventilador no verão, o cheiro horrível de esgoto no quintal, a casa repleta de ratos, baratas, aranhas, cupins, pulgas. Carrapatos e lagartixas”

 

Ao escapar do clichê da região Sul “europeia” José acolhe a vida daqueles a quem é negado um lugar digno na pirâmide social.

 

Ainda que na ilegalidade, à qual o autor não faz apologia, Pedro não esquece das suas inquietações, desfiadas em diálogos naturais, cheios de humor e referências filosóficas.

 

Leitor de Marx, ele explica os princípios da teoria do alemão a Marques em uma passagem sensacional, uma das várias demonstrações de como José soube intercalar a linguagem formal e informal entre narrador e  diálogos:

 

O nome do cara era Marques, que nem o meu?

– Não. Era Marx, com xis.

– Hum… Tá, mas se esse bagulho que a gente conversa não é novidade, por que ninguém nunca botou em prática?

– Já tentaram. Mas não funcionou.

– Não funcionou?

– Não funcionou.

– Mas como assim. Não funcionou por quê?

Pedro riu.

– Não funcionou porque ainda é uma ideia elevada demais pro espírito da maioria das pessoas no mundo. Não funcionou porque é uma ideia que surgiu antes da hora. Não funcionou porque ninguém quer que funcione, mano. Os rico não quer que o mundo seja justo, mas os pobre também não quer. Pode acreditar: nem as pessoa que mais sofre neste mundo de injustiça, nem elas gosta da ideia dum mundo justo quando tu explica pra elas como ia ser um mundo justo. Sabe por quê? É porque num mundo justo, justo de verdade, ninguém ia conseguir ficar rico. Ia ser impossível enriquecer. (…) Num mundo justo, o padrão de vida das pessoa ia depender do quanto elas trabalha. Existe um limite até onde a gente consegue fazer as coisa sozinho. Esse limite é a nossa capacidade máxima de trabalho, e varia um pouco de pessoa para pessoa. Mas nunca, Marques, nunca a capacidade máxima de uma pessoa vai ser suficiente para que essa pessoa consiga acumular riqueza. Não tem como. Tendeu? Só com o seu trabalho, tu não vai ficar rico nunca. A única forma de tu acumular riqueza é aproveitando algum mecanismo social, legal ou ilegal, pra te adornar de dinheiro mais do que a sua capacidade máxima de trabalho diz que tu merece.”

 

“Os Supridores” não acaba bem.

 

Seu último capítulo tem ação, tristeza, emoção e cumpre o desejo de José Falero para a literatura: de que ela saia dos bairros ricos, das mãos dos autores brancos e elitistas e encontre quem tem que caminhar quilômetros para estudar, quem se desespera, como Marques, quando não sabe de que jeito vai criar o filho que está para nascer, quem tem medo de que a chuva forte acabe com a sua casa.

 

Enfim, que ela pertença ao povo.

 

Jovem que leu um livro inteiro pela primeira vez aos 20 anos, ele sabe o tamanho da transformação social que a literatura pode causar numa sociedade em que ser moído até as nossas últimas forças e ossos muitas vezes parece ser a única existência possível.

 

Até quando?

 

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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