Os desgraçados que furam fila da vacinação

 

 

 

Tive a chance de ir aos Estados Unidos duas vezes na vida, ambas há bastante tempo. A primeira coisa que notamos quando chegamos lá é que os americanos adoram uma fila. Pra entrar e sair de lugares, para ir ao banheiro, para falar, para ouvir. E todo mundo, sem exceção, respeita seu lugar. É impressionante como a educação e a noção de coletividade podem fazer milagres como as pessoas, não? Por mais problemas que tenham os Estados Unidos – e são muitos – ninguém, do mais pobre ao mais rico, fura uma fila por lá. O mesmo posso dizer de Portugal e Inglaterra, os outros dois países em que estive até agora. Por lá, pelo menos, em Londres, Liverpool, Porto e Lisboa, as cidades que visitei, não vi uma única fila sendo furada. Se esta circunstância é válida para definir filas de estabelecimentos comerciais e do cotidiano, imagina se alguma dessas sociedades conceberia roubar o lugar numa fila de vacinação de covid-19?

 

 

Claro que não.

 

E o Brasil?

 

O Brasil não ajuda a gente, certo?

 

Já pipocam as notícias de pessoas que estão furando as filas de vacinação em todo o território nacional. Isso te surpreende? Claro que não. É filha de empresário em Manaus, cidade em que há uma crise sem precedentes no setor da saúde. É profissional da saúde sem confirmar se está ou não na linha de frente do combate à pandemia. É gente tentando burlar os mecanismos e protocolos estabelecidos…É um verdadeiro festival com pinta de tutorial sobre como não ser uma sociedade. E você pensa que são os pobres e os idosos, vítimas potenciais da pandemia, que estão fazendo isso?

 

Claro que não.

 

Certa vez tive uma palestra no Mestrado em História em que foi dito por um professor que o Brasil não havia feito a sua Revolução Francesa. Ele dizia isso como meio de justificar a absoluta ausência de consciência social no país. A queda da monarquia francesa em 1789 serviu de exemplo na medida em que se fez presente uma nova consciência de nação, que ultrapassava a visão absolutista, em que o rei era o próprio país. Agora era a visão burguesa, empresarial que, se não era totalmente justa com a população mais pobre, a colocou em posição de se organizar e entender seu papel na formação daquele novo estado que surgia.

 

 

Corta para o Brasil.

 

Quando isso aconteceu?

 

Nunca.

 

Ficamos independentes de Portugal em 1822 pelas mãos dos portugueses e dos seus associados brasileiros da elite.

 

 

Essas mesmas pessoas aboliram a escravidão sem qualquer noção de consciência social em relação ao imenso contingente de ex-escravos que entrariam na vida econômica do país sem qualquer chance.

 

Viramos república em 1889 pelas mãos de um general monarquista.

 

Empreendemos regimes injustos, quando não ditatoriais, que, salvo poucas e heróicas exceções, só fizeram aprofundar a nossa desigualdade social e econômica.

 

Daí eu te pergunto: um país com este ranço social pode ter pessoas que entendem o conceito de coletividade? Que têm empatia? Que percebem o seu lugar?

 

Claro que não.

 

Por essas e outras, por mais tristemente normal – em termos de Brasil – que seja ler sobre pessoas abastadas furando fila de vacinação, fica a certeza de que nosso país, já há décadas, precisa de um programa intenso, global e abrangente de educação. Em todos os níveis, por todos os meios, de todas as formas. Só com educação a gente vai poder construir legislação que puna os furadores de fila, que dê às pessoas a noção de coletividade inexistente no país e que, mais importante, irá entender o seu papel e a sua importância, a ponto de jamais tolerar que outra pessoa se ache mais importante.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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