Os abomináveis bolsomédicos
Ontem a bolsomédica nise yamaguchi esteve na CPI do Senado, que investiga a gestão da crise da covid-19 pelo governo federal. Ela foi convocada pelas suspeitas a respeito de sua participação no gabinete paralelo que teria se instalado para lidar com a evolução da pandemia. Defensora do chamado “tratamento preventivo” da covid-19, yamaguchi surgiu na mídia nacional ainda no ano passado como entusiasta do uso de cloroquina, ivermectina e outras drogas. Enquanto a maioria esmagadora de médicos e pesquisadores ao redor do mundo rechaçaram essas aplicações, chegando mesmo a ridicularizá-las, o governo brasileiro, seguindo as orientações dos Estados Unidos ainda sob trump, deu voz a estes párias científicos. Claro, os motivos são econômicos e políticos, como disse o jornalista Bob Fernandes em ótima reportagem, feita na base do “siga o dinheiro”, que você pode ver aqui. Não por acaso, o faturamento dos produtores de cloroquina, ivermectina e similares deu um salto no último ano. Dentro desta lógica, há espaço para pensamentos escabrosos, como o da própria bolsomédica:
“Há uma série de fatores que levam à tentativa de enfraquecer as populações, deixando que morram. Se um país colapsa, e se ajoelha, perde a capacidade de produção. Eu luto para que o Brasil se fortaleça, que sobreviva a essa guerra. Dois partidos de esquerda estariam particularmente empenhados nesse enfraquecimento.”
Esta fala é de uma entrevista concedida por nise ao UOL, em 19 de julho de 2020.
O fato é que yamaguchi lá esteve por horas, sendo sabatinada pelos senadores, muitos deles bolsomédicos como ela. Em determinado momento, o senador baiano Otto Alencar, do conservador PSD, lhe perguntou se sabia a diferença entre um protozoário e um vírus. A bolsomédica hesitou, tergiversou e respondeu de forma pouco convincente, sendo logo desqualificada por Alencar, ex-professor de Química, Biologia e, como dissemos, médico. Lembrei por um instante das aulas que tive no Santo Agostinho, com o professor Edson Boia. Eu era péssimo na matéria, mas, sim sabia a diferença entre os dois organismos. Acho que nise também sabe e não respondeu de forma convincente por algum nervosismo ou, sei lá, talvez por uma estranha forma de maldade, desprezo pelos senadores ou algo assim. Eu, que acompanhava a transmissão pela TV Senado enquanto fazia outras várias coisas, me dei conta de que o Brasil atual é tão perverso e estranho que até os médicos deixaram de ser pessoas necessariamente boas.
Ao longo do tempo, vários profissionais de saúde passaram pela vida da minha família, salvando meus avós da morte várias vezes. Depois foi com minha mãe e com minha mãe de criação, sempre salvas por gente abnegada e decente. Também tive a chance de estudar com pessoas que se tornaram médicas e aí o problema começa. Exceto por poucas e raras exceções, todos se tornaram conservadores. Não preciso ir muito longe nisso, meu colégio ficava – e ainda fica – no bairro do Leblon, Zona Sul do Rio, reduto de classe média alta. Não espanta que reproduzam o pensamento de suas famílias, ainda que isso não seja desculpa para ser conservador, aliás, qual é a desculpa pra isso? Enfim, mesmo com esta regra, há as exceções. Pois bem, mas, e a quantidade de gente vestida de branco que está nas manchetes dos jornais sendo acusada de conduta reprovável ou, quando não são, agindo de forma lamentável?
Há alguns dias, o bolsomédico (e coach!!!) mineiro victor sorrentino está detido no Egito por ter feito um vídeo em que assedia uma mulher muçulmana. Também está preso o vereador doutor jairinho, do Rio, foi preso acusado de matar seu enteado, Henry Borel, de cinco anos, a pauladas. Ontem mesmo ele foi novamente indiciado, dessa vez por agressões a uma criança de três anos, filha de uma ex-namorada. Ainda que seja “doutor” sem praticar a medicina de verdade, jairinho, que é filho de um líder miliciano do Rio e apoiador do atual ocupante da presidência, é … bolsomédico formado. Além dele, temos a bolsomédica que receitou a cloroquina – defendida por nise yamaguchi – como nebulização em Manaus, em plena crise do oxigênio, matando pacientes, inclusive uma mulher grávida. Temos os bolsomédicos que atenderam Dona Marisa Letícia, ex-primeira dama, quando esta sofreu um AVC e, posteriormente, veio a falecer. Lembram das conversas vazadas nas quais vários destes bolsoprofissionais comentavam o que havia acontecido, torcendo para que ela morresse? E o que dizer da capitã cloroquina, mayra pinheiro? E dos profissionais de medicina que hostilizaram e boicotaram os colegas cubanos, quando estes faziam parte do programa Mais Médicos? E de jack kevorkian, o doutor morte, que “lutou” pelo suicídio assistido nos Estados Unidos? E de josef mengele, que assassinou várias pessoas em experimentos em campos de concentração nazistas? Todos eles bolsomédicos.
Eu acredito na bondade e no compromisso intrínsecos ao ofício da medicina. Sei também que o médico não é uma criatura angelical, necessariamente bondosa o tempo todo, afinal de contas, trata-se de um ser humano. Mas estes comportamentos, profissionais ou não, mencionados acima, são inadmissíveis por um simples fato: quando nos consultamos com um médico, estamos totalmente vulneráveis e enfraquecidos. Não somos versados em leis e constantes químicas, físicas e biológicas e precisamos de ajuda. Precisamos – e confiamos – nos médicos. Se dermos sorte, estaremos diante do esperado, mas, no Brasil burrista, podemos nos deparar com um desses párias antiéticos e o resultado pode ser fatal porque, sabemos bem, essa gente estudou e se preparou para defender a vida. A qualquer custo, político, social, econômico, eles existem para a preservação da vida e não para flertar firme com a morte. Mesmo a morte do bom senso. Felizmente, acho, esses bolsomédicos parecem ser minoria.
Gente como nise yamaguchi e mayra pinheiro, duas mulheres, que tiveram acesso ao meio universitário, que certamente superaram preconceitos de vários tipos e conseguiram atingir pontos altos em suas carreiras, entram para a história da prática médica no país e deste momento terrível como avalistas de uma política sanitária tresloucada e assassina, completamente desvinculada da visão mundial sobre uma doença grave. Do alto de sua falta de noção e pretensão, ambas são responsáveis diretas pelo que está acontecendo no Brasil. Embaixo das quase 500 mil mortes há várias assinaturas. A do ocupante da presidência é o maior desses garranchos, mas, ali, abaixo do dele, estão os dois carimbos de nise e mayra. Que elas sejam punidas e varridas das nossas vistas. Para sempre.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.