Oito anos sem Lou Reed

 

 

Quis o destino que as últimas aparições de Lou Reed em disco fossem, digamos, alvo de críticas razoavelmente mordazes. A anárquica versão de Solsbury Hill, canção de Peter Gabriel, contida no disco-tributo à obra do ex-cantor do Genesis, I’ll Scratch Yours e Lulu, polêmico álbum gravado por Reed com o Metallica, sobre uma ópera alemã do início do século passado, falando sobre abusos e violência contra uma bailarina. Na verdade, Lou Reed nunca foi unanimidade, jamais atingiu altas cifras como vendedor de discos ou lotou shows em estádios, mas permanece como uma das figuras mais influentes da história do rock, responsável pela existência de muitas bandas e artistas, que encontraram em sua narrativa e na concepção sonora de sua banda, Velvet Underground, uma possibilidade concreta de exorcizar os mais diferentes tipos de demônios. Tanto no Velvet (1967-1970) quando em carreira solo (1972-2013), Lou Reed foi um daqueles raros cronistas do lado negro da América, do oposto do sonho americano, do proverbial submundo.

 

Nascido no Brooklyn em 1942, mudando-se para Long Island em seguida, Louis Allen Reed aprendeu a tocar guitarra ouvindo rádio. Era um desses baby boomers, nascido durante a Segunda Guerra, que seria devidamente afetado na década seguinte, quando o Rock’n’Roll surgiu como a primeira alternativa viável para jovens que procuravam diversão e identidade. Aos 14 anos fez sua primeira gravação, no grupo de doo-wop The Jades. Pouco depois, assumiu-se bissexual, o que levou seus pais a interná-lo para tratamento numa clínica psiquiátrica, na intenção de “curá-lo”. Lou chegou a receber choques elétricos com parte do “tratamento”. Aos 18 anos, viu sua oportunidade de sair de casa quando foi admitido na Universidade de Syracuse, onde começou a estudar jornalismo, escrita e cinema, formando-se em 1964, ano em que se mudou para Nova York para trabalhar como compositor na Pickwick Records. Como todos os que estavam envolvidos com artes, Reed transformou-se entre 1964 e 1966. Através de seu trabalho, conheceu John Cale, músico galês que fazia parte de um grupo chamado The Primitives. Cale tinha formação clássica, estudava viola e estava envolvido com experimentos em música atonal. Reed já conhecia o guitarrista Sterling Morrison e, através deste, chegaram até a baterista Maureen Tucker. Os quatro decidiram formar uma nova banda, cujo nome foi tirado de um livro sobre sexo no underground novaiorquino. Nascia o Velvet Underground.

 

 

A importância do Velvet para o rock foi definitiva. Pode parecer impossível, mas, até então (1966/67), o estilo não era capaz de dar conta com precisão das dimensões sentimentais humanas. A partir do Velvet, impulsionado pela combinação das letras e melodias secas de Reed com a visão avant-garde de Cale, possibilitou uma escrita crônica sobre drogas, frustração, inquietações, sexo, paranóia e demais sensações que cresciam exponencialmente num mundo que, enfim se dera conta do caminho escolhido pela socidade, à beira da eclosão de movimentos sociais na Europa e nos USA. O Velvet foi como um instrumento de medição dessas ervas daninhas, capaz de captar com precisão o grande monstro a se criar. Chamaram a atenção de Andy Warhol, artista conceitual, que decidiu apadrinhar a banda, conferindo ainda mais o caráter de modernidade ao som do Velvet. Por sugestão de Andy, a banda recebeu o reforço da alemã Christa Paffgen, mais conhecida como Nico (anagrama de Icon), que participou das gravações do primeiro disco da banda, Velvet Underground & Nico (a banda não gostou da sugestão de Warhol e fez questão de mostrar que Nico não fazia parte da formação). Com a capa assinada por Warhol e um retumbante fracasso em vendas, o Velvet Underground entrou para a história. Canções como Heroin, Femme Fatale, Venus In Furs e I’m Waiting For The Man, nunca tocaram nas paradas de sucesso, tampouco o disco entrou na lista de top 100, chegando ao irrisório patamar de 30 mil cópias vendidas,mas, como disse Brian Eno, cada um dos compradores do disco na época, provavelmente montou uma banda após escutá-lo.

 

 

O Velvet não durou muito tempo. Divergências internas levaram à demissão de Warhol e Nico, que foi amante de Reed e Cale, este último também demitido após o segundo álbum, lançado em 1968, White Light, White Heat. Como a chegada do guitarrista Doug Yule, a banda ainda lançaria dois discos com mais proximidade do terreno das Pop songs, Velvet Underground (1969) e Loaded (1970), do qual constavam dois quase-hits da banda: Sweet Jane e Rock’n’Roll. Lou Reed deixaria o grupo logo em seguida e daria início a uma carreira solo dois anos depois. Se no Velvet a poesia de Reed trazia toda a fauna urbana da maior metrópole do planeta, ela intensificou-se quando ele se viu livre dos limites impostos por uma banda. Apesar de gravar um disco homônimo em 1972 com grandes músicos, entre eles, Steve Howe e Rick Wakeman, ambos integrantes do Yes, foi com Transformer, lançado pouco depois, com produção de David Bowie e Mick Ronson, que Lou Reed viu-se às voltas com a novidade de ter um hit. Walk On The Wild Side foi bem na Inglaterra, muito por conta da presença de Bowie no estúdio e por este ter confessado que Reed era uma de suas maiores influências, principalmente em tempos de Ziggy Stardust, então uma mania na Velha Ilha. O disco também trazia outras canções importantes como Vicious, Perfect Day e Satellite Of Love e tornou-se um dos grandes marcos da carreira solo de Lou. Era o grande momento do glam rock e Transformer, apesar de não ter semelhanças sonoras com o estilo, encaixava-se na ambiguidade sugerida pelo glam, mas de uma maneira menos festeira, digamos.

 

 

Essa inclinação “menos festeira” seria levada às últimas consequências no disco seguinte, Berlin, produzido por Bob Ezrin. A ideia do álbum era contar o romance cheio de potencial destrutivo entre um casal de viciados, com direito a todos os aspectos minuciosamente mapeados e contados com realismo assustador. Com participação de gente como Steve Winwood, Jack Bruce e Tony Levin, Berlin é gelado no bom sentido, dolorido e pungente, sobretudo quando surgem as duas versões de Caroline Says, How Do You Think It Feels, The Kids e, especialmente, a suicida The Bed . Nos discos seguintes, Sally Can’t Dance, Rock’n’Roll Animal e Lou Reed Live (os dois último ao vivo), foi possível ver o quanto Reed mantinha seu radar funcionando em busca de um formato sonoro que se adequasse aos temas que propunha. Em Sally ele praticamente deixou sua guitarra de lado em favor de arranjos mais pomposos para emoldurar canções violentíssimas. A faixa-título, por exemplo, fala de uma menina que foi assassinada por três rapazes, enquanto Kill Your Sons é uma precisa narrativa sobre os tempos de sua internação na clínica psiquiátrica para combater os sintomas de homossexualismo. Rock’n’Roll Animal e Lou Reed Live traziam performances ao vivo para canções do Velvet Underground e do repertório solo, gravadas no mesmo show. Ambos os discos atingiram bom desempenho em termos de venda, ao contrário de Berlin e Sally. Entre os discos ao vivo, no entanto, Lou Reed soltou um dos mais incompreensíveis álbuns de todos os tempos, Metal Machine Music, um disco duplo (64 minutos de duração) com quatro composições formadas apenas por microfonia e guitarras atonais, capazes de fazer os momentos mais experimentais do Sonic Youth soarem como hits dourados dos Beatles.

 

 

A partir de 1975, com o lançamento de Coney Island Baby, Lou Reed iria, aos poucos, se acalmar com o formato ideal para sua música, ou seja, guitarra, baixo, bateria e, no máximo, outra guitarra. Era a configuração do Velvet Underground e, mesmo que este movimento pudesse sugerir uma guinada em diração a uma certa conformidade, seus discos continuaram a produzir momentos inspiradíssimos. O próprio Coney Island Baby é um exemplo de como a poesia de Lou poderia ser gentil em momentos inesperadamente doces como “She’s My Best Friend ou mesmo na faixa título. Este disco recupera muito do idioma das ruas, meio ausente nos trabalhos feitos até então. Lou permaneceria alternando bons e maus momentos em sua carreira, mas mantendo a padronização sonora, o que não significa uma produção menos relevante. Discos belos foram lançados no caminho, sobretudo The Bells (1979), Blue Mask (1982), Legendary Hearts (1983) e New Sensations (1984), numa espécie de abraço a sonoridades mais moderninhas, tangenciando a New Wave com guitarras e melodias cheias de ganchos pop.

 

 

Uma nova guinada viria em 1989, não em termos de som, mas em termos de contexto e conceito. Lou Reed lançaria New York, um disco excepcional sobre a megalópole que lhe acolheu e maltratou por tanto tempo, a quem ele decodificou e entendeu em muitos momentos, a fornecedora principal de inspiração para ele e sua poesia. É mais uma sucessão de retratos duros do submundo noturno, sem qualquer sombra de romantismo ou fingimento de qualquer espécie. Canções como Dirty Blvd., Busload Of Faith e mesmo Dime Story Mystery são como crônicas da cidade, uma espécie de Woody Allen sem humor. O disco abriria uma trilogia lancinante na carreira de Reed, seguida por Songs For Drella, parceria com John Cale, só motivada por um motivo pra lá de justo: o falecimento de Andy Warhol. O termo Drella era indicativo da mistura de aspectos do morto, metade Dracula, metade Cinderella, indicando a complexidade total. O disco é brilhante, talvez mais que New York, igualmente fechado em seu conceito, mas sincero em uma homenagem sem floreios ou declarações de amor derramadas. Cale contribui com harmonia e classe ao produto final, enquanto as letras mantém as coisas no cotidiano, nas internas da relação que tiveram ambos com Warhol.

 

 

O capítulo final desse ciclo viria com o devastador Magic And Loss, lançado em 1992. O disco vinha motivado pela recente perda de dois amigos próximos em decorrência de câncer e Lou resolveu abordar um assunto que havia tangenciado em vários momentos, mas nunca merecera atenção total: a morte. Magic And Loss vem com a crença de que as pessoas tocadas pela morte são transformadas, mas não apenas por conta de alguma enfermidade ou acidente, mas por testemunharem amigos muito próximos morrendo. Quem perdeu pessoas queridas por conta de enfermidades prolongadas sabe a agonia trazida pela incapacidade total de evitar o pior, algo que Lou Reed sentiu em relação aos amigos e busca compartilhar o sentimento com o ouvinte. Há passagens especialmente doloridas em Power And Glory, What’s Good e Harry’s Circumcision. Àquela altura, Lou havia encontrado no guitarrista Mike Rathke, no baterista Fred Maher e no baixista Rob Wasserman uma banda de apoio bem azeitada. Com Reed desde New York, o trio mantinha-se sempre presente.

 

 

Quatro anos depois, Lou Reed viveria opostos. Veria o Velvet Underground indicado para o Rock’n’Roll Hall Of Fame, pouco depois da morte do guitarrista Sterling Morrison (no ano anterior). A banda tivera uma reunião em 1993 para uma pequena excursão europeia, na qual foi registrado o disco Live MCMXCIII, que não chegou a honrar a expectativa de tantos anos por um retorno da mitológica banda, servindo para sepultar qualquer possibilidade de trabalho futuro entre Reed e Cale. Com a indicação ao Hall Of Fame, o Velvet assumiu de direito um lugar na história que já era seu de fato. Lou Reed celebraria também um bom momento em sua vida, uma vez que estava casado com Laurie Anderson e soltou um disco “feliz” ou, melhor dizendo, com pouca incidência de temas pesados, chamado Set The Twilight Reeling. Dois anos depois seria vez de um disco acústico, gravado ao vivo em Londres, chamado Perfect Night: Live In London e 2000 ele lançaria Ecstasy, um trabalho superior, muito mais próximo do rock do fim da década de 1980.

 

Os anos 2000 de Lou Reed foram, digamos, alternativos. Exceto por Ecstasy, ele não produziu nenhum disco “convencional”, preferindo adaptar poemas de Edgar Allan Poe (em The Raven, de 2003), reviver trabalhos do passado (Metal Machine Music: Live at the Berlin Opera House, de 2007 e Berlin: Live at St. Ann’s Warehouse, de 2008) e o controvertido Lulu, gravado em 2011 com o Metallica. Ele realizou um transplante de fígado em maio deste ano e enfrentou complicações após um início de recuperação satisfatório.

 

Lou Reed deixa um legado multidimensional. Influenciou uma quantidade enorme de bandas e artistas, de Echo And The Bunnymen a Joy Division, mostrando a possibilidade do rock retratar com fidelidade total os diferentes submundos que habitam as ruas, as casas e as almas de pessoas, lugares, cidades, momentos. Seu posto permanecerá vago até que surja alguém capaz dessa tradução do que nos é mais primitivo e oculto, desde que decidimos viver uns com os outros numa cidade. Perdemos um gigante de 1,65m.

 

Texto originalmente publicado no Monkeybuzz em 28 de outubro de 2013, disponível aqui.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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