Caos, lama, reconhecimento – a estreia de Chico Science e Nação Zumbi faz 30 anos

 

 

 

Estamos chegando na terceira década do lançamento de “Da Lama Ao Caos”, estreia em disco de Chico Science e Nação Zumbi. O álbum, produzido por Liminha e lançado pelo selo Chaos, da Sony Music, marcou o início do chamado “mangue beat”, nome pelo qual ficou conhecido o movimento de modernização e recriação que eclodira em Recife no início dos anos 1990. A chegada de Chico ao cenário da música brasileira foi, sem dúvida, um marco. Era uma nova, novíssima cara, disposta a experimentar, a carregar nas costas uma herança cultural de uma região do país que já fora representada por vários artistas importantes. Mais que isso: Chico e Nação Zumbi significavam uma modernização de ideias e posturas, que era fruto direto da globalização que estava na ordem do dia daqueles tempos. Em momento de pós-Muro de Berlim, de neoliberalismo sendo vendido como a solução para todos os problemas do mundo, a globalização foi uma espécie de press kit daquele sistema de ideias que chegara com a própria década de 1990. E Chico, à frente de vários outros artistas e bandas de sua cidade, parecia ser o arauto daqueles novos tempos. Mas ainda faltam alguns pedaços da história.

 

Eu estava lá quando o álbum foi lançado. Sua chegada foi antecipada e incensada pelos veículos culturais em ação naquele tempo. Fosse no Rio Fanzine – seção de cultura pop underground do jornal “O Globo”, fosse nas páginas da revista “Showbizz”, a expectativa era imensa pela chegada do registro sonoro oficial do tal movimento. As informações davam conta de uma reinvenção musical, com incorporação de vários ritmos gringos, de hip hop e funk a techno e variações, passando pelo exotismo de manifestações ritmicas caribenhas e africanas, tudo servindo como instrumento de reavaliação dos estilos nativos de Pernambuco. De maracatu ao forró, do côco à embolada, tudo agora, sob o signo da globalização, era fruto das mesmas origens e manifestações. Ou seja, Recife poderia ser parte da periferia de Lagos, Londres ou Long Beach. Cabia tudo em toda parte. E todo mundo achava o máximo este senso de “estar no mundo”. Lembro de um professor, exultante em meio a uma aula sobre o assunto na Faculdade de Comunicação da Uerj, dizendo: “agora nós podemos viver como se estivéssemos em qualquer parte do mundo”.

 

Tamanha euforia era fruto desse aspecto de “press kit” que a globalização trazia. As distâncias se encurtavam via celular, via Internet, que logo teria sua versão em banda larga. Ou seja, parecia que as coisas mudariam de fato. E o som de Chico, pelo menos, aqui no Brasil, foi a trilha sonora disso. Quer dizer, para o público pertencente à inteligentzia nacional, porque, para a imensa maioria do país, o som da globalização foi a reinvenção do samba de roda do Recôncavo Baiano, que alimentou a usina criativa de um outro grupo, chamado Gera Samba, logo rebatizado de É O Tchan. Mas, por ora, devemos deixar isso de lado. O mangue beat era, portanto, uma das pernas dessa modernização nacional via música popular. Havia o hip hop paulistano, igualmente contundente e periférico em termos líricos e novas manifestações do rock anglo-americano, atualizadas para os novos tempos. Porém, nada era mais exótico e interessante que ver a Nação Zumbi empunhando seu arsenal de tambores tradicionais em meio à configuração baixo-bateria-guitarra vigente. E não era só isso: as letras de Chico e companhia retratavam um cotidiano terrível e decadente, vivido na periferia do Recife, uma região que, até então, ninguém sabia que existia, exceto, claro, por quem vivenciava sua existência ali.

 

Chico Science e Nação Zumbi foram contratados em 1993 e entraram em estúdio pouco depois de julho. A gravadora indicou o produtor camisa 10 do Brasil, Liminha, que era convocado para “traduzir” sempre que algo fugia ao esperado mercadológico. E, no caso de Chico, a mistura percussiva, guitarrística e lírica soava, de fato, com algo praticamente inédito. Muitos dizem que a produção é, justamente, o ponto fraco de “Da Lama Ao Caos” e eu devo concordar. Liminha não tinha qualquer familiaridade com a dinâmica dos sujeitos em estúdio, talvez nem eles tivessem isso claro. O fato é que, quando apresentado em disco, muita gente reclamou da sonoridade polida demais, pasteurizante, que tornou a explosão da banda uma mera bombinha. Pode ser, ainda mais se compararmos “Da Lama…” com “Afrociberdelia”, segundo registro de Chico e Nação, que viria dois anos depois, produzido pela banda e por Eduardo Bid. A sonoridade é totalmente diferente, mais ampla, mais forte, mais psicodélica. Liminha, infelizmente, domou as possibilidades desta estreia que, em termos de qualidade das composições, é, a meu ver, até melhor que “Afrociberdelia”.

 

As canções são fortes até hoje. “Rios, Pontes e Overdrives”, desde sempre a minha preferida, ainda é uma locomotiva de ritmos descendo ladeira às margens do Rio Capibaribe, enunciando as localidades esquecidas da periferia recifense. Sua listagem geográfica é prima-irmã do “roteiro dos bailes” carioca e de outras várias manifestações musicais em que os locais de origem são saudados. “A Cidade” é pequeno ensaio antropológico em forma de canção curta e grossa, enquanto “A Praieira” cita a revolta que marcou a cidade pernambucana no século 19, mesmo que muita gente lembre dela como o tema da personagem Açucena, vivida por Carolina Dickmann na novela global “Tropicaliente”, onde foi parar, fruto do pesado investimento de divulgação feito pela gravadora na época. “Banditismo Por Questão de Classe”, “Samba Makossa” (fazendo a ligação com o sucesso de Manu Dibango, “Soul Makossa”), “Monólogo ao Pé do Ouvido”, que meu amigo Vicente adorava recitar em meio às aulas. O disco, ainda que domado, pasteurizado, marcou época, sim.

 

É bom lembrar que o álbum de Chico veio pouco antes do lançamento de “Samba Esquema Noise”, dos conterrâneos do mundo livre s/a, liderados por Fred Zeroquatro, o sujeito que escrevera o tal “manifesto mangue beat” e já tinha sua banda desde meados dos anos 1980. “Samba Esquema Noise” viria ao mundo pelas mãos da Banguela Records, selo que o jornalista Carlos Eduardo Miranda havia fundado com os Titãs. O álbum de Zeroquetro foi o número dois do catálogo do novo selo. O tempo aproximou as sonoridades de Chico e mundo livre, mas, naquele 1994, elas pareciam bem pouco. Enquanto “Da Lama…” sofria dessa uniformização pasteurizada, “Samba” parecia um trabalho mais orgânico, espontâneo e, mais que tudo, perigoso. Ali estavam canções com poder incendiário revolucionário como “Livre Iniciativa”, “Saldo de Aratu” ou “Sob o Calçamento”, roqueiras, psicodélicas, híbridas. Parecia uma proporção Professor Xavier/Magneto ou, melhor dizendo, Martin Luther King/Malcolm X a relação entre a importância dos trabalhos de Chico Science e Fred Zeroquatro.

 

Hoje, trinta anos depois, “Da Lama Ao Caos” só é clássico da música brasileira pelas mãos dos analistas mais apressados. Dizem que foi um dos discos mais importantes da música nacional nas últimas quatro décadas. Eu concordo, mas com a ressalva de que, se for comparado com “Afrociberdelia” e “Samba Esquema Noise”, a estreia de Science e sua turma chega em terceiro lugar. É legal, ganha medalha e tudo. Talvez se outro produtor recebesse a tarefa ou mesmo a própria banda, quem sabe? Botemos na conta da Sony, de Liminha e da mentalidade pasteurizante que sempre permeou as instâncias elevadas da indústria cultural. Mesmo assim, essas três décadas com relevância e reinvenção, mostram como a obra de Chico Science tinha tudo para ser, de fato, enorme e marcante. Não foi, mas por falta de tempo. Uma pena. Mas, como ele diz em “Monólogo Ao Pé do Ouvido”, “modernizar o passado é uma evolução musical”.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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