O Poster Abortado do Dead Kennedys

Se você está conectado à Internet nestes dois últimos dias, ficou sabendo da polêmica envolvendo o poster da turnê nacional dos Dead Kennedys. Se não, eu conto pra você e te convido a refletir alguns instantes. O artista alagoano Cristiano Suarez publicou em suas redes sociais um poster para a visita da banda californiana ao Brasil neste próximo mês de maio. A postagem original de Suarez dizia que a arte havia sido encomendada e autorizada pelo grupo. Nela aparecia uma família vestida de palhaços – a alusão ao palhaço Bozo é óbvia -, usando a camisa amerela da CBF – e símbolo dos protestos pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016 – e ostentando armas. Eles aparecem à frente da imagem de uma comunidade carente, em chamas, em meio a tanques de guerra com insígnias que fazem referência à sigma – símbolo dos integralistas dos anos 1930 – misturada com um cifrão e uma frase dita, cuja tradução para o português é: “eu adoro o cheiro de gente morta pobre de manhã”. É uma citação à fala “Eu amo o cheiro de napalm de manhã”, dita por um tenente-coronel em “Apocalipse Now”, filme icônico de Francis Ford Coppola sobre a Guerra do Vietnã.

Ao longo do dia 22, a arte foi compartilhada em vários perfis nas redes sociais, de músicos a políticos, de páginas de notícias a gente comum. A maioria esmagadora aprovava o poster, fazendo a conexão imediata com o histórico de contestação da própria banda, representante do punk californiano politizado e famosa por discos lançados no início dos anos 1980 que combatiam a presença americana em guerras ao redor do mundo e atacavam a postura neoliberal do governo Reagan. O próprio palhaço Bozo já fora tema de canção do grupo, “Rambozo The Clown”, cuja letra faz menção à fusão do palhaço com o militar criado por Sylvester Stallone, Rambo, um ícone do governo Reagan. Além dela, várias outras, como “California Über Alles”, “Kill The Poor”, “Holiday In Camboja”, sempre com a veia política e antissistema dando as cartas. A verdade é que o vocalista e compositor Jello Biafra, fora da banda desde 1986, era o principal responsável por tal postura. Uma vez fora do grupo, Biafra seguiu carreira lançando discos solo ou em projetos como o Lard, bem como escrevendo livros e participando de eventos ativistas. Os membros remanescentes, que retomaram as atividades do DK em 2001, não são considerados herdeiros do legado do grupo pelos fãs.

Tudo ia bem com a arte de Suarez até que a banda, após gostar do resultado, emitiu comunicado no qual o poster não era mais reconhecido como oficial. Até então, todas as informações davam conta de que, sim, era oficial e representava a opinião da banda sobre o momento atual do país. Pois o tal comunicado desmentia tudo, dizendo que, não, a arte não traduzia o que os integrantes do DK pensavam, uma vez que a banda “incentivava os fãs a pensarem por si mesmos”. Sendo assim, apesar do tal comunicado ter sido retirado das redes sociais pouco depois de sua postagem pela produção da banda e do evento no país, o estrago já havia sido feito. Suarez foi contratado e teve seu trabalho exposto, aprovado, desaprovado e relegado, num espaço de 24 horas.

Meu amigo Ricardo Benevides sugeriu o assunto como pauta ontem à noite. Hoje pela manhã – dia 24 – dei de cara com uma montagem em que aparecia o nome da banda e uma ilustração do artista Romero Brito. Daí me dei conta de que havia a necessidade de falar algo a respeito disso.

Suarez, fã de Dead Kennedys, faz um cartaz para a turnê dos caras num Brasil de 2019. Ora, o país que temos hoje, mais do que em outros tempos, é, sim, intolerante e suscita interpretações em que uma parcela significativa da classe média, uniformizada com camisas da CBF, aprova um governo que se elegeu com declarações anti-pobres, e que vem colocando em prática políticas que atacam os subsídios estatais existentes nas áreas da saúde, cultura, educação, pesquisa, geração de empregos, moradia e, mais recentemente, previdência social. As políticas implementadas – ou em fase de implementação – pelo governo dão conta de um favorecimento da classe empresarial brasileira e das camadas mais abastadas da população, que não precisam contar com a ajuda estatal para estabelecer/manter um padrão de vida. Isso, claro, falando de forma superficial e livre de algum viés ideológico. É uma reflexão mínima sobre os fatos publicados na mídia.

Seria fácil e óbvio presumir que os fãs de uma banda punk, com álbuns lançados nos anos 1980, com canções de temática anti-EUA, antissistema, que se valem da explosão de baixo/bateria/guitarra para expressar sua mensagem, seriam simpatizantes de um poster em que o sistema – simbolizado pela família de classe média, com armas na mão, em meio a tanques – que são o governo – ataque e vibre com o desfavorecimento dos mais pobres, afinal de contas, são pessoas que teriam votado em políticos comprometidos com este objetivo-fim. Mais que isso: os fãs da banda deveriam compreender sua mensagem original, adaptá-la ao nosso tempo e manter a fruição da obra de arte possível. Este é um processo natural e necessário, certo?

O que temos em vez disso? A retratação implícita da banda, o ataque ao artista, seu provável desfavorecimento financeiro, pois foi pago para criar e teve seu trabalho desmerecido e, mais que tudo, a certeza de que a arte, representada aqui por uma banda punk histórica, não é mais importante que compromissos financeiros e/ou ideológicos com o próprio sistema. Ao renegar o cartaz de Suarez, o Dead Kennedys, representado por seus integrantes, produtores e eventuais “fãs” que não tenham aprovado a mensagem das imagens, estão indo na direção oposta do que os tornou conhecidos e donos de um legado. Eu não sou admirador da banda, mas respeito e conheço sua história a ponto de compreender totalmente o cartaz quando o vi pela primeira vez. Vê-los retrocedendo desta forma é triste mas sintomático dos nossos tempos.

Há poucos meses uma multidão de “fãs” do Pink Floyd se chocou com o conteúdo político das canções de Roger Waters, ex-baixista e vocalista do grupo inglês. Nos anos 1970, quando o punk ganhou corpo, um dos alvos principais era, justamente, o quarteto progressivo, que era visto como um dinossauro fora de época e desnecessário. Pois Waters, mesmo diante de críticas pesadas de imprensa, fãs e políticos brasileiros, não retrocedeu um só minuto e não se furtou a chamar o então candidato – que foi eleito presidente – de fascista e bradar o “ele não”, em oposição à sua candidatura. O resultado? Gente dizendo que suas canções eram “políticas demais” e alguns aloprados dizendo que iam dar queixa na policia sobre o show de Waters em São Paulo.

Das duas, uma: ou somos o povo mais ignorante do mundo em termos de interpretação da língua inglesa e seus significados ou temos os mais lamentáveis e reacionários fãs de rock do planeta. Não por ideologia “A” ou “B”, mas pelo total desconhecimento do significado e origem do que ouvem e gostam.

Precisamos ficar de olho e fazer a nossa parte. No caso da Célula Pop: informar. Sempre.

Força, Cristiano Suarez.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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