O último momento realmente criativo do U2
U2 – How to Re-Assemble An Atomic Bomb
93′, 22 faixas
(Island)
A gente poderia usar o clichê e dizer “o tempo passa cada vez mais rápido” para se referir a este vigésimo aniversário de “How To Dismantle An Atomic Bomb”, décimo-primeiro disco do U2. Até parece que passou menos tempo desde que Bono irrompeu com o improvável chamado “uno, dos, três … quatorze”, abrindo o single “Vertigo”, que puxou o álbum lá em 2004, mas o fato mais importante – e mais triste – é que, de “Atom Bomb” pra cá, o U2 iniciou uma trajetória descendente e decadente, deixando para trás a sua maior qualidade – a ousadia. Os trabalhos que se seguiram a este foram marcados por uma gradativa acomodação/falta de originalidade que me fizeram deixar de acompanhar a banda como eu vinha fazendo desde 1984. A partir daí tiveram lugar os arranjos modorrentos, a contenção da guitarra de The Edge em arranjos preguiçosos e toda uma coleção de releituras acústicas terríveis de canções importantes para muita gente. Voltar vinte anos no tempo é, de certa forma, reencontrar esse U2 novidadeiro e sem medo de experimentar, mesmo que “Atom Bomb” não tenha sido o seu trabalho mais inspirado, ainda é extremamente superior a tudo o que veio depois. E, para tornar a tarefa ainda mais interessante, o U2 desencavou um punhado de canções inéditas da época, reempacotou os lados-B e versões alternativas dos singles do disco e lança um “shadow album”, ou seja, um disco de sobras de estúdio, chamado “How To Re-Assemble An Atomic Bomb” e o resultado é muito acima do esperado.
Quer dizer, “bem acima do esperado” tendo em vista a atual fase da banda. Em relação ao que Bono e cia. faziam na época – 2004 – ele é ligeiramente mais interessante que o “Atom Bomb” original. Aliás, antes de dissecar essas novas canções, convém lembrar que o álbum gerou a “Vertigo Tour”, uma turnê mundial da banda, que, inclusive, passou por aqui em fevereiro de 2006, em dois shows no Morumbi. Desta mesma fase, dois dos quatro shows que o U2 fez em Chicago, geraram o DVD “Vertigo 2005 – Live In Chicago”. Lembro de achar “How To Dismantle An Atomic Bomb” um “disco normal”, que confirmava a direção que o grupo havia tomado no anterior, “All That You Can’t Leave Behind”, de 2000, no qual a “fase eletrônica” dos anos 1990 era pasteurizada a níveis seguros, prevenindo qualquer arroubo como os registrados em “Pop” ou em “Zooropa”, os trabalhos anteriores. Essa filtragem de influências dançantes e sintéticas possibilitou uma certa atualização do “formato rock” do U2. A julgar pelo sucesso de canções como “Walk On” e “Beautiful Day”, parecia uma jogada sensata. Quando “Atom Bomb” chegou, quatro anos depois, este formato já parecia meio sem sentido, rendendo apenas duas canções com um pouco mais de força – a já mencionada “Vertigo”, um rockão eletrônico padrão – e a sutil “City Of Blinding Lights”, que herdava o modelo de “canção lenta” do grupo. E parou por aí.
Uma audição nas canções inéditas dessa fase aponta que havia mais para mostrar, muito além do que esses “formatos” poderiam proporcionar, nos fazendo crer que a opção estética que o U2 adotou não era algo totalmente bem resolvido. Ouvindo hoje, é de se lamentar que tanta coisa boa, que teria temperado a mesmice do álbum com momentos de genialidade tenha ficado de fora. “Treason”, por exemplo, é herdeira direta da fase “Pop”, gravada em Los Angeles com participação de … Dr. Dre e Dave Stewart, dos Eurythmics. A levada é dançante, eletrônica, mas, ao mesmo tempo, lenta e elíptica, com momentos de tensão crescente. Outra faixa inédita que aponta para caminhos mais ousados é a ótima “Happiness” que mostra a atenção que o U2 prestava a novas bandas da época, como Franz Ferdinand ou Rapture, que misturavam funk à la Talking Heads e ritmos dançantes em suas canções. Aqui há uma nítida levada funkeada como poucas vezes o U2 ousou, com resultados ótimos. E tem um bom “Theme From Batman”, que remonta ao trabalho de releitura que Adam Clayton e Larry Mullen Jr fizeram na trilha sonora do primeiro “Missão Impossível”, de 1996.
Outras canções são mais dentro do formatão que o U2 adotou a partir de 2000, o que não significa que sejam canções ruins, pelo contrário. “Picture Of You (X+W)” foi lançada como “Fast Cars” no álbum original e aparece aqui com mais tempo e mais detalhes no arranjo. “Evidence Of Life” é legítima canção do U2 desta época, com riffs de guitarra em meio a uma levada meio dançante, com Bono em boa forma vocal. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, lembra o que a banda fazia bem no início de sua carreira, talvez em “War” ou “Boy”. “Luckiest Man In The World” é outro momento 100% U2 2004, entre o épico e a indecisão sobre o que fazer mais adiante. Enquanto isso, a linha de baixo de Clayton e a bateria discreta de Mullen fazem parede para que The Edge construa suas paisagens guitarrísticas. “Country Mile” poderia estar facilmente em “All That You Can’t Leave Behind”, com boas guitarras e sonoridade padrão. E tem a releitura de “Are You Gonna Wait Forever?”, que pesa mais nas guitarras e amplia possibilidades.
Este “shadow album” desmente a tese de que o U2 já estava meio acomodado em “Atom Bomb”, mas mostra que a banda tendia para isso. Uma olhada mais atenta para estas canções – e sua inclusão no álbum original – faria dele um trabalho bem melhor. De qualquer forma, elas servem para provar mais uma vez que o U2 já foi muito, muito mais interessante.
Ouça primeiro: “Happiness”, “Treason”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.