“Coração Sangrento”: Wado e Zeca Baleiro em ótimo momento
Zeca Baleiro e Wado – Coração Sangrento
29′, 10 faixas
(Saravá)
Zeca Baleiro é um dos artistas mais prolíficos do Brasil. Sua música é herdeira direta do chamado “Pessoal do Ceará”, especialmente de Belchior e Fagner, com pitadas generosas de erudição popular e percepção apurada da realidade e do nosso tempo. É um intelectual acessível, compositor inspiradíssimo e excelente músico. Com uma produção altiva e importante, Zeca é, também, um cara que adora colaborar. Tem álbuns gravados com Fagner, Chico César e agora traz o sensacional Wado, que também é um herdeiro dessa sonoridade/atitude, mas com um olhar diferente, essencialmente alternativo e globalizante. Esses dois caras são amigos há muito tempo, escreveram algumas canções em parceria mas só agora, pleno 2024, vem o disco “oficial” e colaborativo, este arrebatador “Coração Sangrento”. É, facilmente, um dos álbuns mais belos que ouço em muito tempo e o segredo de sua beleza está na “falsa” simplicidade de seus arranjos e canções. Tudo aqui é elaboradíssimo, pensado e colocado de modo a levar o ouvinte para um passeio de jangada voadora sobre o Mar da Tranquilidade. Ou algo do gênero. Senão vejamos.
No caso de “Coração Sangrento”, há um terceiro elemento que tem muita responsabilidade sobre a beleza da sonoridade. Sérgio Fouad, produtor, multiinstrumentista e um dos arranjadores de base, consegue extrair sons que lembram, ao mesmo tempo, os mineiros dos anos 1970, o próprio Pessoal do Ceará e até mesmo alguns momentos acústicos de bandas inglesas dos anos 1990. Os belos arranjos de cordas, feitos por Pedro Cunha, revestem de leveza e lindeza as canções em que aparecem, num resultado muito bonito. Essa harmonia e entrosamento dos músicos dá a impressão de falsa simplicidade em tudo que se ouve, mas, como já dissemos, essa é a prova da imensa sofisticação dessas canções e da habilidade dos envolvidos. É a velha máxima do “parece fácil, mas não é”. Essa combinação é tão perfeita que chega ao sublime em alguns momentos.
As faixas de “Coração Sangrento” foram compostas a partir de trocas de áudios de Whatsapp e datam do início da pandemia da covid-19. Entocados em suas casas, angustiados pela indefinição e perplexos pelo andar da carruagem, os dois músicos trocaram considerações sobre temas universais como amizade, amor, medo e o transcorrer célere do tempo. Essas reflexões soam realistas mas não vestem uma capa de desânimo ou pessimismo. Na faixa-título, por exemplo, em meio a um arranjo leve e lindo de cordas, versos como “Se os barcos são a vapor//Já não importa o vento//Se é lá que se encontra o amor//Na parte mais de dentro”, dão a tônica dos questionamentos sobre facilidades e perdas, sobre o que é mais verdadeiramente importante. A melodia é linda e a canção, que abre o disco, serve como um convite irresistível para entrar se espalhar. Em “Avatar”, a melodia intrincada comporta dúvida e medo ao perguntar “De dentro da vida//Da vida pra fora//Depois não existe//Existe um agora//Me diga, verdade//Onde anda você?”.
“Dia de Sol” tem um quê de Beatles nos timbres do arranjo, mas pode ser apenas uma impressão. O clima é de serenidade diante da vida, da quase-certeza sobre a importância de deixar as coisas se assentarem. Um verso é particularmente lindo: “A vida passa, ninguém vê//Pela vidraça vem você//O vidro turva a luz do sol//E mesmo assim//Que dia tão lindo”. Em “Congelou”, mais um arranjo belíssimo, sutil, dolorido e triste, que emoldura a sensação de perda sobre pessoas queridas e lugares. “Um edifício entre nós//A avenida, a vida inteira//Miro a distância entre os sóis//O amor não sabe ver fronteira”. “Quebra-Mar” é um ijexá luminoso e cheio de sol, enquanto “Alma Turva” cutuca a maldade das pessoas em relação às outras: “Cê tá com a alma turva, irmão//Você entende tudo errado//Cai no samba sincopado//Achando que é dance”. E “Zaratustra” é meditação serena sobre o imponderável e a grandeza da vida. “Eu sou a noite mais fria que prescinde do agasalho”. Um desfile de belezas existenciais.
“Coração Sangrento” é daqueles discos que, lançados hoje, são belos e tal. Mas, se fossem cria dos anos 1970, certamente seria saudado como um clássico intertemporal da música brasileira. Não deixe a percepção do tempo atrapalhar: ouça pra ontem esse que é um dos mais belos álbuns de 2024, fácil.
Ouça primeiro: tudo, absolutamente tudo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.