Oruã é a grande banda brasileira de 2024

 

 

 

Oruã – Passe
47′, 13 faixas
(Transfusão Noise)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

Eu ainda estava na redação de Rock Press quando ouvi falar em Lê Almeida pela primeira vez. Já se vão cerca de vinte anos e o jovem e promissor guerreiro do lo-fi fluminense, egresso da Baixada, confirmou-se como uma das figuras mais importantes da música alternativa brasileira. Entre o início dos anos 2000 e hoje, Leandro “Lê” Almeida fundou selo, gravadora, estúdio, lançou inúmeros trabalhos em inúmeros projetos, sempre com muita criatividade. Já foi comparado pelo jornal inglês The Guardian ao americano Robert Pollard, líder do Guided By Voices, por conta do ritmo alucinante com que grava e lança álbuns. Um pouco mais de atenção, no entanto, revelará um artista mais complexo. Lê agregou influências de hip hop, afrobeat, krautrock, free jazz e até música nacional dos anos 1970 ao seu som baseado no rock alternativo enguitarrado dos anos 1990, num escopo que abrange até mesmo o supracitado Pollard e outras bandas e artistas como Superchunk, Pavement, Flaming Lips e por aí vai. Suas gravações e criações chegaram aos ouvidos de Doug Martsch, que o convidou, mais o parceiro/tecladista João Casaes, para integrar seu grupo, Built To Spill, primeiramente numa turnê brasileira, em 2019. O sucesso foi tanto que a dupla participou das gravações do álbum de 2022, “When the Wind Forgets Your Name” (resenhado aqui). Não é surpresa imaginar que essa roda viva de eventos e situações influenciou diretamente a confecção do novo álbum do projeto Oruá, banda que Lê mantém desde 2016. Sendo assim, “Passe”, este novíssimo trabalho, chega como um dos lançamentos nacionais do ano. Venha conhecer.

 

“Filho do Centro do Rio de Janeiro, nasceu à noite e frequenta os bailes pela madrugada. Free jazz de pobre. Kraut de vagabundo. Sem neurose. Faz barulho na Baixada Fluminense, Europa e Estados Unidos, não viaja a turismo e nunca fez intercâmbio”. É assim que o próprio Lê define o Oruã, que tem, além dele nas guitarras e vocais, João Casaes nos sintetizadores, Bigu Medine no baixo e Phill Fernandes na bateria. O conjunto iniciou suas atividades em 2016 e fio adquirindo um tom mais político ao longo da discografia. Quando Martsch começou a procurar músicos brasileiros para colaborar com a passagem do BTS pelo Brasil em 2018/19, deu de cara com as gravações do Oruã e não teve dúvidas: recrutou Lê e João. Além de acompanharem o sujeito, a dupla e mais os outros integrantes do Oruã se apresentaram como número de abertura da turnê nacional do BTS, sendo chamados para participar de shows também no exterior. Tal fato levou o quarteto a se apresentar para várias plateias, por mais de quinze países, divulgando seu rock alternativo torto e cheio de referências próprias. “Passe” foi gravado na estrada entre 2022 e 2024, mostrando reflexos diretos de tudo o que viveram.

 

O novo álbum chega como uma criatura estranha em tempos como os atuais. É totalmente desvinculado das fórmulas banalizadas de feitura de álbuns rock em 2024no Brasil, parece um produto de outro tempo, o que, paradoxalmente, não lhe confere um ar datado ou algo nostálgico. Parece vindo de um universo alternativo e honra seu DNA guitar indie noventista com orgulho. Tempera essa base estética com caos cosmopolita-suburbano atualíssimo e filtra tudo por meio das guitarras e dos synths. Também se vale de samples para adicionar camadas e texturas extras às canções. Faz mais sucesso e tem reconhecimento lá fora, o que é uma vergonha, porém, é totalmente esperado de um país emburrecido como o nosso. A música do Oruã é crua, cáustica. Tem muito do seu DNA forjado no reconhecimento das injustiças e violências sociais tão comuns ao Brasil. Racismo, fascismo, burrismo, tudo isso está no radar da banda e deve ser combatido com força.

 

O início de “Passe” com “Real Grandeza” e “Caboclo”, encadeadas, sintetiza tudo o que estamos dizendo aqui. Ainda que os vocais de Lê sejam quase indecifráveis e seu canto seja estranhamente gentil, o instrumental das canções pesa na guitarra e tem no baixão de Bigu Medine um eficaz falso nove. É ele que comanda as ações e surpreende a defesa adversária, quase entrando com bola e tudo. A tempestade sônica criada pela guitarra de Lê e as teclas de Casaes oscilam entre o noise, o krautrock e o eletrônico com a rapidez de um raio. Tudo é estranhamente familiar a quem conhece o tal rock americano de guitarras, mas também vai atingir a quem, por exemplo, gostou de “Cê”, de Caetano Veloso. Outras canções maravilhosas também surgem pelo percurso sonoro: “Análise de Conjuntura”, o ar setentista de “Escola Construtivista” (com vocais ótimos de Laura Lavieri) e o susto de “Insensatez Abolição”, com influências de post rock e MPB baiana setentista ao mesmo tempo. O romantismo de “Brutos Amores” é a surpresa da cereja no bolo.

 

“Passe” é uma porrada só possível porque esses caras empreendem tudo o que podem para tocar fora do Brasil. É um disco brasileiro feito por brasileiros que não têm espaço no Brasil. Funciona de um jeito estranho, mas é praticamente sensacional. Ouçam, conheçam, passem adiante.

 

 

Ouça primeiro: “Escola Construtivista”, “Análise de Conjuntura”, “Insensatez Abolição”, “Real Grandeza”, “Caboclo”, “Brutos Amores”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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