O Paradoxo Gisele Bundchen
Eu não dou muita bola pra Gisele Bundchen. Nunca dei. Não sei de sua vida pessoal ou profissional além do que rende uma lida ocasional em manchetes aqui e ali ao longo desses anos todos em que a gaúcha é assunto na mídia. Porém, lembro de Caetano Veloso, encantado com a simpatia de Gisele, se aproximando dela e aparecendo em fotos e vídeos há alguns bons anos. E lembro do velho compositor baiano se afastando em seguida, depois de Gisele dar uma declaração na qual desconhecia completamente a existência pregressa de uma ditadura no Brasil. Acho que, depois disso, Caê nunca mais esteve na presença de Gisele Bundchen.
O brasileiro gosta dela. Que motivos haveria para não gostar? Bonita, simpática, muito rica e bem-sucedida num setor especialmente loteado pelos americanos e europeus: a indústria da moda. A gente gosta de penetrar nesses lugares que nos são quase vetados. Até que, uma vez lá, passamos a agir e ser tratados como estrangeiros. Gisele, 42 anos, é supermodelo e, como tal, parece ter um salvo-conduto mercadológico que lhe confere liberdade para fazer qualquer coisa e ser muito bem remunerada por isso. O mundo neoliberal prevê este tipo de super-remuneração desde os anos 1990, quando o dinheiro foi alçado à primazia absoluta nas indústrias do entretenimento, na mídia, na produção artística, enfim, quando a grana passou a ser o único motivo para grande parte da criação e da difusão de eventos, obras e as consequentes informações geradas.
E Gisele ainda tem alguns plus que fazem a delícia das editorias de fofocas: foi namorada de Leonardo Di Caprio e foi casada com o jogador de futebol americano Tom Brady, de quem se separou em outubro do ano passado. Brady, por sua vez, se tornou um dos mais bem remunerados atletas do mundo. Ou seja: dinheiro não falta quando falamos Gisele Bundchen. Nem sei se a culpa é dela, mas, sempre que ela é assunto, barulhinhos de caixas registradoras tilintando vêm à mente.
Fui tirar a prova e digitei “Gisele Bundchen” no Google, para ver o que viria:
– “Gisele Bündchen passeia com os filhos em Miami e usa bike de R$ 125 mil”
– “Conheça detalhes da mansão alugada por Gisele Bündchen e Tom Brady – Gisele Bündchen e Tom Brady são donos de um patrimônio de mais de R$ 3,3 bilhões. A mansão onde o casal vive com os filhos fica na Flórida”
– “Marido de Gisele Bundchen compra iate de 32 milhões de reais e dá nome em português para a embarcação”
– “Gisele Bündchen comprou casa de 6,6 milhões de reais em meio a ‘vai e volta’ de Tom Brady na NFL”
– “Solteira, Gisele Bündchen compra casa avaliada em R$6,4 milhões”
– Gisele Bündchen vira acionista de multinacional”
E o mais atual, decorrente da passagem de Gisele pelo Carnaval carioca:
– “Gisele Bündchen fatura 57 mil reais por minuto por presença em camarote na Sapucaí”
Esta última manchete pipocou nas redes sociais depois que Gisele esteve presente no camarote de uma marca de cerveja na Marquês de Sapucaí, no Rio. Lá ela permaneceu por três horas, deixou-se fotografar com o logo da contratante, bebeu apenas água e saiu sem falar com ninguém da imprensa. O preço para esta aparição: 2 milhões de dólares ou, segundo a cotação atual, 10 milhões e trezentos mil reais. Daí a conta de 57 mil reais por minuto de presença da supermodelo no evento. Algumas reportagens sobre o acontecido ainda acrescentaram que funcionários da organização do Desfile de Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro receberam 200 reais por uma noite inteira de trabalho, certamente mais cansativo, na operacionalização e logística do espetáculo. Uma diferença e tanto, não?
Eu ainda me revolto com essas distorções do neoliberalismo de espetáculo. Cachês de atores, jogadores de futebol, cantores, participantes de bbb, que atingem cifras estratosféricas e geram uma contrapartida, digamos, questionável. Nem vou me ater a detalhes mais acadêmicos do assunto e deixarei a discussão correr no terreno do bom senso. Dez milhões e trezentos mil reais para três horas de … compartilhamento de espaço com uma supermodelo é um preço justo? Se Gisele não está na passarela, o que ela faz que justifique esse valor? Deve existir uma tabela de custos para bancar este tipo de investimento e, a partir dela, poder escolher que tipo de pacote presencial está mais afeito à demanda. No caso da empresa de bebidas, pagar mais de dez milhões de reais a uma supermodelo significa exatamente o quê? Superexposição, cliques na mídia social, dominar as discussões? Alguém irá consumir seu produto de uma forma mais engajada a partir da visita de Gisele em seu camarote? Parece loucura, mas tudo é possível.
O que é absurdo para minha mente simples, não parece incomodar uma boa parte de brasileiros habitantes do mesmo extrato social. Fiz uma postagem no meu perfil pessoal do Facebook e, em meio a pessoas igualmente indignadas com o preço do cachê, houve defesa dessa condição de remuneração, dizendo que “é assim mesmo, uma supermodelo tem este tipo de cachê” ou “a vida de modelo é curta, ela tem filhos pra criar”. Quer dizer, não há nada a fazer, o “mercado é assim mesmo” e ponto final. E, após eu usar o adjetivo “imoral” para definir o que sinto por uma quantia desta monta, houve a resposta “imoral é o que o governo anterior fez com o cartão corporativo”, o que me faz pensar que há uma natureza de aspiração por diminuição das desigualdades econômicas e sociais no mundo por parte de quem estava argumentando em favor de Gisele. Mas, ora, não era para querer a igualdade A PARTIR de uma remuneração mais justa para a modelo, tendo em vista a multidão de pessoas passando fome no país, os estragos aprofundados do governo anterior e etc? Não. E este é o grande problema.
As pessoas não conseguem juntar os pontos do grande desenho e entender que, em última instância, só há pobreza porque há uma concentração … imoral … de riqueza. Tal argumento não é ingênuo, é verdadeiro. A mesma estrutura que remunera Gisele nesta ordem é a mesma que impede que o morador de comunidade do litoral paulista não possa reconstruir sua casa levada na enxurrada que assolou a região há poucos dias. Ou que faz pessoas cobrarem 93 reais por um litro d’água após as enchentes. Tudo está interligado. Se o mundo é globalizado na informação, porque não aceitar que é, também, nos mecanismos econômicos?
Outro argumento atenuante para justificar o valor do cachê de Gisele: seu ativismo ecológico. Ora, me desculpa, mas, defender e fazer o possível pelo meio ambiente é – ou deveria ser – uma obrigação moral de cada habitante do planeta. Se a supermodelo é preocupada com esta questão, então está autorizada a receber remunerações irreais por conta disso? Eu acho que não. Mas, veja, eu estou no coro dos descontentes. Minha opinião não é a mais popular. Muita gente – muita mesmo – acha justo que Gisele e outras mega-celebridades globais da área do entretenimento, do esporte e da mídia recebam estes cachês e ofereçam contrapartidas tão, digamos, singelas.
Alguns dirão que a mesquinharia dos contratantes é maior e que, pasmem, Gisele PASSOU A PERNA no contratante e levou 10 milhões dele (sério, também vi este argumento inacreditável). Eu acho que não. E falo por mim: se desfrutasse de uma condição material tão abastada, me daria o direito de recusar propostas de empresas e contratantes que estão no lado oposto da minha área de atuação ou de espectro ideológico/pessoal.
Só não esqueçam disso: a mesma estrutura que remunera super-celebridades nesta magnitude é a mesma que te esfola vivo ao longo do mês e te paga pouquíssimo, sem direitos trabalhistas. Não são mundos à parte. Pensem nisso.
Em tempo: o texto não perderia sentido se substituíssemos Gisele por qualquer outra super-celebridade global, como Cristiano Ronaldo, Barack Obama, Neymar, Harry Styles, Leonardo Di Caprio, Madonna….
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Concordo totalmente com o que foi dito no texto. E a palavra é essa: imoral.
Aliás, essa modelo nunca foi de prestigiar carnaval por aqui, de repente passa a “morrer de amore$“ pela folia…