O Padre Marcelo Rossi tem me assombrado

 

Eu tinha idade suficiente para discernir o certo do errado quando o Padre Marcelo Rossi surgiu como um fenômeno cultural no Brasil. Era 1998, aquele deserto de possibilidades do governo FHC, quando qualquer boa ação por parte do presidente já era coisa do passado. Era seu segundo mandato, lembrado pelas privatizações, pelos apagões, e … pelo Padre Marcelo aparecendo no Domingo Legal, do Gugu Liberato.

 

Confesso que fiquei meio desconcertado em ver o sacerdote de batina, cantando músicas religiosas e … fazendo sentido naquele auditório lotado de jovens paulistanas. Tudo bem, era a nossa religiosidade católica aflorando e tornando tudo mais ou menos palatável. O padre fazia o gênero garotão, ex-surfista, fortão, quase um daqueles meninos do Rio que surgem em novelas e outras áreas da mídia. Só que aquela imagem era a de um religioso, jovial, descolado, mas um padre. E, como tal, era contra o aborto, o casamento gay e tudo o que significa defender os dogmas católicos/cristãos naquele tempo – e hoje, tristemente. Claro, há exceções louváveis, mas aquela figura deu início a uma sutil linhagem de padres cantores midiáticos, dos quais só me lembro de um tal de Padre Jorjão. Eu, que estudei 12 anos em colégio católico, conheço as duas faces deste ofício. Lidei com professores-padres linhas duras e com professores-padres humanistas, portanto, sei que não dá pra encerrarmos a função de sacerdote numa única caixinha comportamental. O próprio Papa Francisco é uma das maiores exceções em muito tempo e se enquadra na categoria “humanista” com muita honra.

 

Voltando ao Padre Marcelo. O sujeito reapareceu recentemente na mídia “secular” quando foi arremessado de um altar durante uma missa no interior de São Paulo. Uma “fã” surgiu do nada e o empurrou, fazendo com que o sacerdote se machucasse bastante e mais não se falou. Dia desses, eu passava pela filial Plaza Shopping da Lojas Americanas e dei de cara com um exemplar de “Ruah”, um livro no qual o padre aparece magérrimo na capa, com legumes e um liquidificador. Logo pensei: “oras, é um livro de receitas do Padre Marcelo Rossi” e imaginei que o próximo lançamento poderia, literalmente, vir em qualquer área do conhecimento humano desde, sei lá, um livro de dicas de mecânica, ou um guia de carpintaria. O fato é que, para a minha absoluta surpresa, chega hoje no e-mail do site uma sugestão de pauta que fala … do Padre Marcelo Rossi, dizendo que ele está lançando um novo single, “Maria Passa À Frente”, em parceria com o sertanejo conservador Gusttavo Lima. Eu pensei: “é um sinal, preciso escrever sobre o padre”.

 

Antes, porém, fui me informar sobre a carreira literária do homem, mais especificamente sobre o livro que vi, “Ruah”. São 96 páginas de conselhos espirituais sobre comer bem, uma espécie de coach alimentar com viés católico. Há conselhos como “caminhe meia hora por dia”, algo que, sinceramente, o bom senso já nos diz. Ou uma chamada de capa que diz “quebrando paradigmas sobre gordura ser saudavel e magreza ser doença”, que eu imaginava já ter sido quebrado lá pelo século 19. Li críticas sobre o livro ser superficial e não acrescentar nada a quem procura uma dieta saudável. Na verdade, uma olhada na capa de “Ruah” não entrega seu conteúdo, abrindo espaço para ele ser um misto de receitas banais com conselhos manjados. Também há frases temerárias como “o corpo saudável é a morada do Espírito Santo” ou algo como “Deus quer que você tenha saúde, o corpo também importa, não só o espírito”. Quem esperava um relato aprofundado sobre o emagrecimento do padre ou algo assim, não se satisfez com a livro. De resto, não é preciso um padre para te dizer se você precisa comer melhor, certo? Pelo menos, acho que um médico seria a melhor opção.

 

Sobre a carreira musical do Padre Marcelo, bem, ela fala por si, entenda como você quiser. Se ele despontou como um grande recordista de vendas naquele distante 1998, imagino que ainda tenha poder de fogo para fazer bonito num tempo em que as paradas de sucesso são exclusivamente dominadas pela mídia e pelos produtores vinculados à ela. A tal de “Maria Passa À Frente” tem um arranjo que poderia ser do Roberto Carlos atual, com letra falando em resistir, em se levantar e tudo mais. É uma balada derramada, mandando o ouvinte confiar no amor de Jesus e culminando no refrão “Maria, passa à frente, pisa na cabeça da serpente”. Ou seja, bem, é isso aí.

 

Num mundo como o nosso, faz sentido o Padre Marcelo vendendo livros e mandando o ouvinte pisar na cabeça da serpente, enquanto é arremessado do altar numa missa no interior paulista. Pelo menos é o que dizem pra você. E se não der pra acreditar nisso, ora, o problema deve ser só seu. Resista.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “O Padre Marcelo Rossi tem me assombrado

  • 14 de outubro de 2019 em 18:13
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    Bom artigo. Ponto de vista bem aplicado e fatos incontestes. Abç

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