O Brasil é um país racista e hipócrita

 

 

João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, foi assassinado no dia 19 de novembro, quinta-feira. Ele estava numa unidade do supermercado Carrefour, quando foi abordado por dois seguranças, que teriam sido chamados por uma funcionária, após João, de acordo com a polícia, fazer um gesto para ela. Os dois o levaram para o estacionamento da unidade e, após João ter tentado agredir um dos seguranças, o espancaram por cinco minutos ininterruptos. João morreu no local e as primeiras verificações apontam para asfixia como sendo a causa da morte. Milena Borges Alves, de 43 anos, mulher de João Alberto disse que tentou ajudar o marido enquanto ele sofria as agressões, mas foi impedida pelos seguranças. O enterro acontece neste sábado, em Porto Alegre.

 

As manifestações contra o Carrefour começaram já na manhã de sexta, Dia da Consciência Negra e seguiram ao longo do dia, não só em Porto Alegre, mas em várias cidades do país, variando de protestos pacíficos a atos mais violentos. Perguntado sobre o que havia acontecido na capital gaucha, o vice-presidente, hamilton mourão, disse:

“Não existe racismo no Brasil”

 

Tal fala pode parecer absurda, certo? Basta olhar todos os indicativos sociais e econômicos do país para perceber o quanto a população negra é desfavorecida em todos os itens de medição estatística. A grande exceção: segundo o último Censo, 53% da população brasileira é de negros e mestiços.

 

Esse acontecimento triste e inaceitável em Porto Alegre me fez lembrar da minha pesquisa para o Mestrado em História, cuja dissertação falou sobre a identidade política e musical no Black Rio, entre 1960 e 1980. Para poder escrever sobre o assunto, precisei de bastante informação e levantamento de dados e pude constatar, em três momentos em especial, a imensa e inaceitável dose de racismo presente na sociedade brasileira.

 

A primeira fala veio de Gilberto Freyre, escritor de “Casa Grande e Senzala”, o pai da chamada “democracia racial”, uma espécie de tradução acadêmica para a frase do vice-presidente mourão. Ela diz que o Brasil encontrou uma forma de comunhão social em que o racismo não existe porque todos se amam e se reconhecem como brasileiros. Negros, índios, brancos e mestiços iguais, perante os outros. Pense bem e me diga se isso é verdade. Freyre diz, a certo ponto, sobre o “perigo” do Black Rio para o Brasil:

“Teriam os meus olhos me enganado? Ou realmente li que, dos Estados Unidos, estariam chegando ao Brasil – se é que já não se encontram – vindos da tradicionalmente muito amiga República dos Estados Unidos da América do Norte – por quem? – de convencer brasileiros, também de cor, que suas danças e seus cantos afrobrasileiros deveriam ser de melancolia e de revolta? Se é verdade o que suponho ter lido – escreve o autor de Casa Grande e Senzala – trata-se de mais uma tentativa da mesma origem no sentido de introduzir-se num Brasil crescentemente, fraternalmente, brasileiramente moreno – o que parece causar inveja a nações também bi ou tri-racionais nas suas bases – o mito de uma negritude, não a la Senghor, de justa valorização de valores negros ou africanos, mas que faria às vezes daquela luta de classes tida por instrumento de guerra civil”.

 

Ou seja, a chegada de negros norte-americanos “contaminaria” os fraternos e pacíficos negros brasileiros com “ideologias” antirracismo. Ora, se aqui não existe racismo, não há o que querer com esta gente subversiva, certo, Gilberto?

 

 

A segunda fala é do colunista social Ibraim Sued. Com uma participação fixa no Globo, ele desferiu, sobre os bailes black do subúrbio carioca em meados dos anos 1970.

 

“O líder é o cantor Gerson King Combo e o vice-líder Tony Tornado. (…) Eles chamam uns aos outros de ‘brother’, e o cumprimento é com o punho fechado para o alto. Nos shows que estão promovendo no Rio e em São Paulo conseguiram a presença de 10 mil pessoas. Os brancos são evitados, mal tratados e até insultados. […] Nos espetáculos os negros aproveitam a oportunidade para agitação, jogando negros contra brancos e fazendo uma preleção para o domínio da raça no Brasil, a exemplo do que acontece nos States.”

 

 

E a terceira – e última – fala vem da colunista do jornal Folha de São Paulo, Erika Knapp, sobre o lançamento do primeiro álbum de Gerson King Combo, em 1977. O texto foi publicado em 15 de fevereiro de 1978.

“As grandes gravadoras estão preparando o “similar nacional” em grande estilo. A novidade do ano, via Phonogram, deverá ser Gerson King Combo, uma cópia de James Brown. Na contracapa do disco de King Combo, esclarece Roberto Giasanti, tem até de James Brown, que também é da Phonogram, parabenizando o cantor pela difusão do gênero no Brasil (…) que o estilo da apresentação é todo americanizado, com ele sozinho no meio do palco, muito lamê e brilharecos, três criolas fazendo fundo vocal à sua esquerda, os metais à direita com a turba se mexendo pra um lado e pro outro enquanto toca. “

 

Quatro falas. Um vice-presidente, um escritor/antropólogo, um colunista social de ascendência árabe e uma jornalista, todos relativizando o racismo, enquanto praticam a forma mais espontânea de … racismo.

 

O Brasil é um país racista e hipócrita. Isso sim.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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