O Leblon, as peladonas e as reaças

 

 

Eu moro em Niterói há pouco mais de 13 anos, mas sou carioca. Nasci no Largo do Machado e morei em Copacabana até 2006. Salvo intervalos menores que um ano no total – nos quais morei na cidade de Macaé e no bairro da Tijuca, vivi o tempo todo por lá, pela Zona Sul do Rio. Tive sorte e uma família com possibilidades de custear um ensino básico e médio num dos melhores colégios da cidade, o Santo Agostinho, que fica no bairro do Leblon. Ele mesmo, que o autor Manoel Carlos costumava usar como cenário de um Rio de Janeiro exemplar. Tudo lindo, tudo limpo, gente cordial e legal andando nas ruas e uma harmonia invejável. Não se engane: é tudo falso. O Leblon, assim como os Jardins, em São Paulo e outras regiões caríssimas de sua cidade, segrega e exibe o pior que a sociedade brasileira tem. A mais nova manifestação disso veio neste fim de semana, quando duas mulheres estavam num carro conversível, de biquini, como se desfilassem, enquanto um homem dirigia o automóvel. Até que eles adentaram a Rua Dias Ferreira, um dos cartões postais do bairro carioca. Ao passar em frente a um restaurante, rindo e brincando, o grupo foi alvo de xingamentos de uma arquiteta, que estava numa das mesas.

 

– Vagabunda, drogada! – teria dito Aline Cristina, a tal arquiteta, para as moças que estavam no carro, disparando uma garrafa d’água em direção a elas logo em seguida.

 

A água e a garrafa atingiram as costas de Sheila, uma das moças que estavam no carro. Ela desceu e partiu para a mesa de Aline, iniciando uma briga. Em seguida, um homem, que também estava na mesa da arquiteta, se meteu na confusão e arrancou a parte de cima do biquini de Sheila, que voltou para o carro e deixou o local.

 

Hoje, segunda-feira, dois dias depois do ocorrido, as duas já postaram depoimentos em suas redes sociais, a polícia está atrás do motorista do carro, a imprensa está atrás de Aline e eu, cheio de assunto para escrever, estou aqui, dissertando sobre o fato. Mas não é por acaso. Em São Paulo, na noite de sábado, uma outra discussão irrompeu no restaurante Gero, porque um homem se revoltou por que não foi atendido com a rapidez que esperava. Em poucos minutos, outro barraco irrompeu, com o tal sujeito, um dos sócios do restaurante Rubayat, um dos mais caros da cidade, foi retirado do local, reclamando que os donos do Gero seriam “playboys” e que “não tinham berço”. Precisavam demonstrar uma “educação maior” porque ele tinha “educação europeia, educação americana” e que, eles, “precisavam honrar o fato de serem filhos de médico”.

 

Em comum a decadência da elite brasileira, que o escritor de sociólogo Jessé de Souza batizou de “elite do atraso”, tanto em São Paulo, quanto no Rio, que não aceita algum tipo de comportamento que desafie uma ordem, uma lógica que ela considera certa. E ponto final. Seria muito fácil dizer que tais questões são menores, que não importam, que é exagero da imprensa mas, por trás dos discursos estão o preconceito, a censura e a iniciativa de fazer justiça por conta própria. Além de, claro, a incapacidade de viver em sociedade, caso esta não lhe sirva completamente.

 

Aline Cristina, não por acaso, tem perfil no Facebook em que exibe um “PT Não” em seu tema de avatar. Segundo reportagens de veículos apuraram, ela já fez postagens sobre o voto declarado no atual ocupante da presidência e de simpatia expressa ao juiz sérgio moro, mas se decepcionou com a conduta do governo federal na pandemia de Covid-19. Nesta afirmação, por mais que deixemos de lado a questão política em seu nível partidário, está contida a conduta expressa por ela. A intolerância com o que julga “errado”, a iniciativa de agredir que está no seu espaço. De tomar pra si a incumbência de julgar uma conduta e atacá-la, sem maiores esclarecimentos, baseada numa visão que é sua e, talvez de mais ninguém. É o desejo de punir, de erradicar um comportamento com om qual não concorda, sem qualquer chance de diálogo ou tentativa de entendimento/compreensão do que está acontecendo, para não mencionar a intolerância pura e simples.

 

Como assunto acessório ao principal, o fato de que, pleno fim de semana de Rio e São Paulo, em seus recantos de enorme poder aquisitivo e informação, multidões de grã-finos ostentam sua condição social em restaurantes e bares, completamente desprovidos de medidas para evitar o contágio e disseminação do coronavírus. Apenas os garçons surgem, em vídeos postados sobre os barracos, devidamente munidos de máscara e proteção.

 

Sem empatia, sem diálogo, sem noção, esta é a elite brasileira, que é a responsável única pelo aprofundamento da desigualdade e pela intolerância de todos os tipos que caracteriza o nosso país desde que o primeiro português desembarcou em 1500.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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