mundo livre s/a virou suco

 

É no bit beat bytes com lama, no batuque, no groove e na percussão que uma das principais bandas nacionais explora os sons do mangue e o mistura com o moderno, da malandragem à consciência de classe, do samba ao rock, passando pelos ritmos regionais com muita originalidade. É, Brasil, chegou a vez do suco de mundo livre S/A. A banda liderada por Fred Zeroquatro articulou o movimento cultural Mangue Beat juntamente com Chico Science & Nação Zumbi. Esses pernambucanos fizeram uma bela fusão sonora e cultural e eu os considero uma das bandas mais autênticas e importantes para entender a música feita no Brasil.

 

A opinião é livre assim como é livre a iniciativa. Começo com ela: “Livre Iniciativa”, faixa do primeiro disco lançado em 1994 intitulado “Samba Esquema Noise”, em alusão ao “Samba Esquema Novo”, de um Jorge Ben safra 1963. E o que falar dessa livre iniciativa no Brasil de 2020 com direito a pandemia? Álcool gel, telas, miséria e genocídio dos mais pobres, o seu suor é o melhor de você e que ele faça de você um empreendedor de sucesso no país em que o desemprego é o novo normal. Bem como a morte de milhares acontece enquanto o desgoverno diz querer combater a pobreza, mas o que não sabíamos é que seria matando pobres.

 

“Livre Iniciativa” para desumanizar o cidadão que tá com prato vazio e continua ouvindo o não? Ou um asqueroso “se esforce mais para atingir o sucesso”, o primo rico tá aí pra lembrar. Uma das artimanhas do capitalismo é fazer com que sintamos orgulho em sermos explorados, em estarmos cansados de tanto esforço, termos os dias baseados em correr atrás da máquina. O orgulho de enriquecer o patrão. Trabalho, trabalho novo. Não importa, trabalhamos até morrer apenas para sobreviver. E esse é o tom de “Livre Iniciativa”: engajamento político em uma letra que é cantada como se fosse uma rotina, uma linha de produção “trabalho, trabalho, novo”.

 

 

Diz o grande bruxo que o capitalismo consiste na exploração do homem e dos recursos naturais. E o esgotamento de ambos já se apresentou há tempos, basta olhar o número de doenças atribuídas à rotina laboral e a resposta que o planeta está nos dando com tantas catástrofes. É com o peso de uma tonelada de soja e milho ou um helicoca que sentamos e assistimos anestesiados à destruição, e a da camada de ozônio é uma delas.

 

Pacotes agrícolas, “importação de tecnologias”, exportação de cérebros, destruindo a camada de ozônio. Arados, tratores, colheitadeiras americanas destruindo a camada de ozônio. Fertilizantes, melhoramento genético vegetal e animal da Europa, destruindo a camada de ozônio. Pecuária e uma agricultura que serve para alimentar o próximo corte a ser servido no seu churrasco, ou no hambúrguer artesanal, destruindo a camada de ozônio. Queimadas, pragas e solo degradado, o obsoleto de lá, vira o moderno aqui, destruindo a camada de ozônio. Segunda faixa desse suco que tá ácido é “Destruindo a Camada de Ozônio”, do disco “Guentando a Ôia”, de 1996.

 

 

Arroz pro povo não há, mas a soja pro boi sim. E o gado segue manso. Em pleno 2020, de altas tecnologias, de grandes pesquisas científicas, o mundo todo está envolvido em um chorume de obscurantismo, que desvia os olhos da miséria, do aquecimento global, da destruição massiva das florestas, das pessoas vivendo em casas de papelão com chão feito de calçada. O estômago colado nas costas da maioria é a base para o bolso gordo do patrão. E continuamos destruindo a camada de ozônio em ritmo acelerado.

 

 

E nós, que temos tanta fé em deuses e acreditamos naquele superior que nos presenteou com esse mundão? Que criou o homem à sua imagem? Não vou ficar aqui nesse bla-bla-bla de falar regras do que é racional e crível, que a igreja é ópio do povo, mas vamos combinar, o ser humano se dá muita importância ao achar que tem um ser superior, que fez isso tudo e está preocupado com a gente. Menos, gente, bem menos. Aliás, esse deus tá bem sádico. Claro que ninguém quer viver entre as sombras, mas que o nosso suor não sirva pra engordar conta de pastor/padre/bispo. flordelis, crivella, silas malafaia, r.r soares, joão de deus, edir macedo, marco feliciano, pe. robson de oliveira, estevam e sônia hernandes, dom josé ronaldo… fucking shit e levem a familícia junto.

 

Homem bomba, bomba, derrame de sangue, abuso, violência, sonegação, roubo, saque, ainda bem que não tenho essa fé. Lembremos sempre que a solidariedade e compaixão não são dimensões religiosas, são humanas.

 

“Se eu tivesse fé/Fucking Shit” é uma das minhas escolhas por ser justamente esse retrato da nossa santa hipocrisia, que mata, cospe, rouba e enterra em nome de deus. É a terceira faixa do disco “Novas Lendas da Etnia Toshi Babaa” de 2013 e decidi colocar aqui neste suco por ter aquele tom de deboche que a gente tanto gosta.

Ninguém quer viver
Envolto em escuridão
Eu te vi escutar, de vez em quando
O sopro da razão

Basta eu me render
Que tudo vai mudar
O céu vai sorrir

Grande bosta

Você não é ninguém (bla, bla, bla, bla) (não)
Assim tão especial (bla, bla, bla, bla)

 

 

 

E a gente segue como uma grande horda acostumada a tomar sem reclamar, se reclama é do sofá, mas facil apontar do que mudar. Um dos méritos da mundo livre S/A é o engajamento político na maior parte das músicas e o mix de sonoridades. E tudo soa tão atual, não apenas o contexto, mas a sonoridade em si.

 

“Negócio do Brasil” é uma faixa que tem isso: som moderno com letra atual, apesar de ser de 1998, do disco “Carnaval Na Obra”. Nem precisa ser explicada, pois quem vive em terra brasilis sabe muito bem. Mas escolhi ela por sua atualidade, sem tirar nada, talvez apenas adicionar as questões das milícias, do passa pano, do jeitinho (que não é nosso mérito, mas bem praticado pelas terras daqui. Enfim, o negócio do Brasil é saber tudo e não fazer nada, deixar vazar o esgoto e passar pano.

Pode ser as claras
Ninguém vai notar
Mesmo que algo vaze, vai evaporar
Sua excelência autoriza aquela venda
E terá parte na sociedade,
sua campanha estará garantida e nos registros
como de praxe nada vai constar…
No congresso eu passo
Tá quase na mão
A impressa eu calo
Desvio a atenção
Quem vai ter coragem de pôr em
Xeque mau prestígio e notoriedade,
Por mais que me achem um boçal,
Quem vai enfrentar um imortal?

 

 

É Brasil, é 2020, é golpe seguido de necropolítica, é Covid-19 e quem votou nesse daí é culpado, sim. Tudo é político. Contudo, não seria possível enfrentar tudo isso sem um mexe-mexe, umas pastilhas coloridas e, muito menos sem meu esquema. Como diria aquelas capas de perfil de Facebook “o amor é revolução”. Brincadeiras à parte, ponto.

 

Neste suco o conteúdo político das músicas reinou e sim, o amor é um ato político. Amar em tempos de ódio, cólera e pandemia é um ato político. Assim como ser alegre ou fazer arte. E quem aí não teve um esquema? Quem não teve, está vivendo errado. Como diria o querido professor “a vida é a perseguição do seu esquema”. Errado não é. E por isso eu finalizo esse texto com essa faixa que é uma das minhas favoritas, é a minha cachacinha ou a dancinha quando toca um som malemolente, ela é “Meu Esquema”. Faixa do álbum “Por Pouco”, de 2000, é uma das mais legais e originais manifestações de amor. O amor no detalhe. É meu retiro espiritual, minha chapação, é o que meu médico receitou, enfim, é meu esquema. E cada um sabe dos seus.

 

E a gente vai percorrendo a letra e se deparando com todas alegorias usadas na tentativa de explicar o amor, ou os diferentes amores/esquemas.

Ela é meu desfile internacional
Ela é meu bloco de carnaval
Minha evolução
Galega tento descrever
O que é estar com você
Princesa todos vão saber
Que eu estou muito bem com você

 

Fiquei devendo um monte de músicas ai, mas não posso abusar do chefe dessa lojinha. Mas é isso, sintam-se livres para explorar essa banda que é um mundo único.

Ariana de Oliveira

Ariana de Oliveira é canhota de esquerda, Cientista Social, estudante de Jornalismo e comunicadora da Rádio Univates FM. Sobre preferências: vai dos clássicos aos alternativos.

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