O Irlandês – Veredito

 

 

Uma das polêmicas mais ridículas da atualidade é ver gente falando sobre a longa duração de “O Irlandês”, mais recente filme de Martin Scorsese. Tem pessoas dizendo que é enorme (são cerca de três horas e meia de duração) e que não dá pra vê-lo de uma só vez. Se fosse assim, o que esta gente teria feito em relação a clássicos como “E o Vento Levou”, “Lawrence das Arábias” ou “A Lista de Schindler”? Scorsese, que nada tem a ver com isso, ainda cutucou o público padrão 2019, dizendo que seu filme não era para ser visto em celulares, que pedia telas maiores. Além destas discussões inúteis, faltava quem dissesse se o filme é bom, se vale ou se não vale o “investimento” de tempo. E eu digo: vale. E muito.

 

Há várias maneiras de ver a realização de Scorsese. “O Irlandês” é um trabalho detalhadíssimo sobre a ascensão da máfia como um importante ator na política e na sociedade americanas do pós-guerra. É possível ver tal fato em vários âmbitos. A narrativa escolhe mostrar um personagem central, o motorista de caminhão Frank Sheeran, vivido por Robert De Niro. Ex-combatente na Itália, ele conduz caminhões pelas estradas da Pensilvânia, quando se encontra com Russ Bufalino (Joe Pesci, em uma de suas melhores interpretações desde sempre), uma influente figura na Filadélfia. Frank logo percebe que Russ é um integrante da máfia, um chefão, a quem várias pessoas vão pedir favores, conselhos e autorizações. Nasce uma amizade entre eles, baseada no respeito e na confiança e logo Frank estará integrado à organização, assumindo funções que vão variar com o tempo, dando-lhe mais e mais projeção.

 

Uma das atribuições recebidas ao longo dos anos é que Frank vá trabalhar com Jimmy Hoffa (Al Pacino, perfeito), o presidente do Sindicato dos Caminhoneiros da América, figura importantíssima na política da época, influente e que conta com o apoio da máfia e grande penetração popular. Frank consegue ganhar a confiança de Hoffa e passa a figurar como uma espécie de assessor para “assuntos obscuros”, agindo nos bastidores quando necessário, além de proteger o sindicalista de todos os tipos de perigo. Em paralelo, Frank mantém seu vínculo com os chefões mafiosos, especialmente com Russell. Destas relações, em vários planos, surgirão eventos que comprometerão as ações de Frank no âmbito familiar e pessoal, selando seu destino.

 

Para dar conta da trajetória dos personagens ao longo do tempo, Scorsese mostra as mudanças na sociedade americana – das quais eles são agentes e pacientes ao mesmo tempo – não se furtando a vincular a máfia com eventos importantes, como a eleição e a morte de John Kennedy e a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, numa tentativa desesperada de retomar o acesso aos cassinos e hotéis americanos perdidos para a Revolução Cubana, de 1959. Além da máfia, Scorsese mostra a participação da CIA, numa espécie de “joint venture” interventora sem o conhecimento formal do governo. O transcorrer dos anos também surge na caracterização dos artistas, funcionando muito com Pesci e nem tanto com De Niro, que mostra todo o seu talento como ator quando Frank fica mais velho e inserido no contexto mafioso.

 

Martin Scorsese é um diretor afeito ao estudo da participação do crime organizado na formação da sociedade americana. Ele já fez isso em vários outros filmes, especialmente em “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, ambos com De Niro e Pesci no elenco. Mais recentemente, ele teve Jack Nicholson no papel central de “Os Infiltrados” (além de Leonardo di Caprio e Matt Damon), no qual falava sobre a máfia irlandesa em Boston. Ele tem o maior cuidado na escolha dos roteiros e empresta seu talento e critério, sempre obtendo resultados no mínimo relevantes. Não é diferente com “O Irlandês”, no qual ele conta com um elenco sensacional (além do trio principal, é preciso lembrar do ótimo papel de Ray Romano) para dar conta da história de um homem comum que se torna testemunha e agente de um sistema tão importante quanto qualquer outro dentro de uma sociedade. E como tal fato pode ser implacável em suas cobranças por lealdade e dedicação.

 

“O Irlandês” é cinema à moda antiga. Não tem pressa e brinda o espectador com horas de ótimo entretenimento, provocando discussão e reflexão quando acaba. Veja em telas grandes. Scorsese tem toda a razão.

 

“The Irishman”

EUA, 2019

Direção: Martin Scorsese

Com Robert de Niro, Al Pacino, Joe Pesci

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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