O interminável Terminal Guadalupe ressurge ao vivo

 

 

 

 

Quem estava lá, sabe muito bem o que vou dizer: como era legal o rock independente brasileiro dos anos 1990/00. Bandas, singles, fitas cassete, releases feitos à mão, fanzines, ações de guerrilha e, sobretudo, fé no futuro. Não se faz uma cena dessas sem acreditar num final feliz em algum ponto do porvir, mas, isso já é outro assunto. O que eu posso dizer é que, durante o tempo em que estive na Rock Press (entre 1995 e 2004), pude ver muita coisa acontecendo. Era um tempo em que a Internet era incipiente e até misteriosa, bem longe desta supervia de várias mãos de hoje. Era uma estrada vicinal, de barro, com barrancos e solavancos. Era um tempo em que o máximo de conectividade era baixar arquivos mp3 no Soulseek ou no Kazaa e, para as bandas, ter um perfil na Trama Virtual. Ou no MySpace. Ou nos dois. Mas isso já era quase 2010 e não estamos falando dessa outra década. Os anos anteriores, ou melhor, as décadas anteriores, trouxeram artistas que ainda não podiam contar com a grande rede para a divulgação de seus trabalhos. Este período, entre fim dos anos 1990 e metade dos anos 00, caracterizou-se como uma espécie de vácuo entre épocas bem distintas. E, justo neste espaço de tempo, estava o Terminal Guadalupe.

 

Surgido em Curitiba em fins de 2003, das cinzas de outra banda, chamada Lorena foi embora, o Terminal Guadalupe começou mais como um projeto paralelo de Dary Jr, líder da Lorena. Na verdade, ele escrevera um roteiro para um curta-metragem e, a partir disso, decidiu fazer uma trilha sonora. No início, Dary usou este nome para batizar esta trilha, “Burocracia Romântica”, ajudado por músicos de outra banda curitibana, a Poléxia. No ano seguinte lançaram “Girassóis Clonados”, álbum que trazia material do álbum de estreia e algumas regravações. Só no álbum “Vc Vai Perder O Chão”, de 2005, que o Terminal já poderia ser considerado uma banda, composta por, além de Dary, Allan Yokohama (guitarra e voz), Fabiano Ferronato (bateria) e Rubens K (baixo). Naquele tempo, o grupo se definia como “pop de garagem”, ou, segundo o próprio Dary, “uma mistura de Leoni com Nirvana”. Em 2007 veio o álbum seguinte, “A Marcha Dos Invisíveis”, considerado o grande trabalho dos sujeitos e figurinha fácil nas listas de melhores discos daquele ano em publicações especializadas.

 

O fato a ser celebrado neste texto é o lançamento de “Como Despontar para o Anonimato”, gravado ao vivo entre 2006 e 2008, pelo selo 8 Bics, do cineasta e músico Manoel Magalhães. O álbum faz parte da Invasão Independente, uma série de lançamentos que cobrirão este momento do indie nacional no início dos anos 2000, especialmente com gravações ao vivo e nunca ouvidas em streaming. Com a palavra, o próprio Manoel:

 

“Angustiado com as lacunas de documentação no cenário independente nacional, resolvi criar um projeto para lançar no streaming álbuns que julgo fundamentais para o entendimento do contexto da música produzida no país fora do ambiente da indústria, das grandes gravadoras. Todos os estados do país têm ótimos artistas e bandas que estão fora do acesso fácil das pessoas nas plataformas, então criei essa iniciativa, chamada Invasão Independente, para remasterizar esses discos com capricho e torná-los acessíveis a um público maior. Serão álbuns completos, EPs, singles, e especialmente shows completos, já que acho fundamental que existam registros das bandas executando ao vivo seu repertório. Além do Terminal Guadalupe, logo lançaremos a discografia completa das bandas OAEOZ, Johnz e Buttertoffs, além de um ao vivo da Columbia no Humaitá Pra Peixe.”

 

Ou seja, é mais uma iniciativa de um cara preocupado com a preservação da memória de bandas, veículos informativos e do próprio público da música independente brasileira. Não custa lembrar, Manoel dirigiu, ao lado de Bruno Vouzella, o documentário “Nada Pode Parar Os Autoramas”, sobre a banda carioca e seu terceiro disco, segundo ele, “um marco na carreira do trio”.

 

Voltando ao Terminal Guadalupe, a banda entrou em um hiato após as gravações ao vivo, que se quebrou apenas com “Agora e Sempre”, disco lançado em 2022, já com os integrantes morando em países diferentes, enfocando muito do que havia acontecido no Brasil após as eleições de 2018 e, pouco depois, da pandemia da covid-19. Este álbum, além de excelente, recolocou o Terminal Guadalupe em movimento, algo que se comprovou com a reunião da banda no dia 19 de julho último, quando Allan e Dary, acompanhados de Marcelinho França e Ivan Rodrigues, subiram ao palco do The Bowie, em Curitiba, para marcara o lançamento do registro ao vivo pelo 8 Bics.

 

Sobre este momento, Dary acrescenta:

 

“São registros de uma banda feliz e no que parecia, até então, seu auge. Ali, em casa, ao lado de amigos e militantes da nossa música, vivemos noites de celebração que foram bem gravadas. O material cumpre esse propósito de resgate histórico por meio da coleção do selo 8-Bics enquanto eu e Allan trabalhamos no álbum novo”

 

Ou seja, vem novidade do Terminal Guadalupe para breve. Estamos de olhos e ouvidos atentos.

 

Enquanto isso, conheça a obra da banda, informe-se e prestigie os artistas, divulgadores, donos de selo e jornalistas independentes do país. Eles seguem precisando.

 

 

 

 

Como Despontar Para o Anonimato

Terminal Guadalupe ao vivo (2006-2008)

  1. Pernambuco Chorou (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  2. Atalho Clichê (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  3. Lorena Foi Embora (Dary Jr.)
  4. El Pueblo No Se Va (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  5. Sal de Fruta feat. Eduardo Cirino (Eduardo Cirino)
  6. Praça de Alimentação (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  7. Esquimó Por Acidente (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  8. Torres Gêmeas (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  9. Megafone de Bagdá (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  10. Recorte Médio-Oriental (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  11. As Cinco Horas da Jornada (José Roberto Martins/Dary Jr.)
  12. Síndrome de Estocolmo feat. Rafael Souza (Rafael Souza/Cris Bertold)
  13. De Turim a Acapulco (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  14. Bons Meninos Vão para o Inferno (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  15. Grupo de Extermínio de Aberrações feat. Beto Cupertino (Beto Cupertino)
  16. Cachorro Magro (Igor Ribeiro/Rubens K)
  17. A Marcha dos Invisíveis (Allan Yokohama/Dary Jr.)
  18. O Peso do Mundo (Dary Jr.)
  19. Uma Canção para Lena (Dary Jr.) – bônus*
  20. Ni (Dary Jr.) – bônus*

 

Terminal Guadalupe

Allan Yokohama – guitarra e voz

Dary Jr. – voz e violão

Fabiano Ferronato – bateria

Lucas Borba – guitarra, violão e teclado

Rubens K – baixo

 

Participações

Eduardo Cirino – voz em “Sal de Fruta”

Beto Cupertino – voz em “Grupo de Extermínio de Aberrações”

Rafael Souza – guitarra e voz em “Síndrome de Estocolmo”

 

Faixas 1 a 18 gravadas de novembro de 2007 a abril de 2008 no Jokers Pub Café, em Curitiba, e mixadas por Carlos Zubek.

Faixas 19 e 20 gravadas em agosto de 2006 no Teatro Odisseia, no Rio de Janeiro.

Remasterizado por Manoel Magalhães.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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