O grotesco comercial da Volkswagen com “Elis Regina”

 

 

A Volkswagen está comemorando setenta anos de atividades no Brasil. Chegou aqui no governo Juscelino Kubistchek, como uma das montadoras pioneiras a se instalar no país, em meio ao clima de “cinquenta anos em cinco”, plataforma modernizante daquele tempo. Desde então, vendendo inicialmente a baixo custo, a Volks se tornou uma das mais familiares fabricantes de veículos no país, tendo no Fusca, o seu VW 1300, a vedete maior da relação custo/benefício em termos automobilísticos. Com o tempo vieram o TL, O VW-1600, a Brasília, a Variant, o SP-2, o Karman-Ghia, o Gol e vários outros modelos. Não espanta que, depois de tantos anos em atividade no mercado nacional e detentora desta sensação de familiaridade junto ao público, a Volks venha comemorar em alto estilo. Lançou uma peça publicitária em que a canção-tema é “Como Nossos Pais”, escrita por Belchior e lançada em 1976 no álbum “Falso Brilhante, de Elis Regina. Já seria curioso uma canção com letra tão crítica ser inserida num comercial comemorativo de uma multinacional mas, para coroar o contrassenso, uma recriação da própria Elis aparece dirigindo uma Kombi e interpretando a canção. Emparelhada a ela, sua filha, Maria Rita, dirige uma versão moderníssima do velho furgão alemão, o ID.Buzz, totalmente elétrico.

 

 

O mais interessante e alarmante: o vídeo, postado no YouTube e linkado abaixo, ganhou uma aclamação unânime nos comentários, com um contingente impressionante de pessoas emocionadas e “viciadas” no comercial, vendo-o várias vezes. Estou vendo a página no dia 4 de julho de 2023, dezessete horas após sua postagem e o contador do Youtube aponta 289 mil visualizações e 15 mil curtidas. A criação da peça ficou por conta da AlmapBBDO. Vejamos duas opiniões de executivos da Volks:

 

 

“A Volkswagen do Brasil tem o compromisso de ser uma empresa cada vez mais humana e próxima das pessoas. E nada mais emocionante do que promover um encontro inédito entre a mãe Elis Regina e a filha Maria Rita, dois ícones da música que estão nos corações dos brasileiros, assim como a Volkswagen do Brasil, que neste ano celebra seus 70 anos de história e sucesso no País. Com a campanha, a Volkswagen destaca a evolução da marca e a renovação do seu portfólio de produtos, mostrando que ‘o novo sempre vem’. Ao unir a Kombi, um ícone do passado, com o ID.Buzz, a versão 100% elétrica do modelo, que chega ao Brasil em lote limitado de 70 unidades, fortalece a presença do País na estratégia global de eletrificação da marca”, diz o vice-presidente de Vendas & Marketing da Volkswagen do Brasil, Roger Corassa.

 

 

“A campanha de 70 anos da Volkswagen do Brasil é uma homenagem às artes de fazer música e automóveis, produtos que encantam e emocionam as pessoas. Esse encontro de mãe e filha entre Elis Regina e Maria Rita, além de emocionar, também reforça o DNA da marca em tecnologia e inovação, trazendo o uso de inteligência artificial treinada para fazer o reconhecimento facial de Elis. A junção de ferramentas com a ajuda de uma tecnologia de redes neurais artificiais possibilitou criar uma mistura perfeita entre o rosto real da dublê e a imagem recriada de Elis; a ação usa a voz original da cantora. Esse é um presente que a Volkswagen oferece em sua celebração de 70 anos: um dos maiores encontros intergeracionais da música e dos automóveis. E somente a Volks poderia proporcionar essa homenagem aos brasileiros. Somos uma marca com história com os brasileiros e essa homenagem era um sonho para todos os colaboradores e clientes que fizeram e fazem parte da família Volkswagen”, afirma Livia Kinoshita, gerente executiva de Marketing Comunicação da Volkswagen do Brasil e SAM.

 

 

Ou seja, publicitários fazendo publicidade.

 

 

O que alarma é a incapacidade de interpretar o real sentido da canção. Belchior a escreveu como uma crítica à passividade de sua própria geração, que seria incapaz de levar adiante os ideais revolucionários propostos em seu tempo, não restando outra escolha a não ser conformar-se em levar a vida dentro de uma conjuntura opressora, aquilo que entendemos por “sistema”. Ou seja, “Como Nossos Pais” é um libelo contra a falta de mudança, a passividade e ironiza o que este mesmo sistema chama de “novo”, algo que, como já dissemos, nunca muda. É, justamente o contrário de uma canção que enaltece a imutabilidade do tempo, que glorifica uma tradição de setenta anos. É JUSTAMENTE O CONTRÁRIO DISSO. Não bastasse a total oposição entre adquirir um veículo automotivo de uma montadora multinacional como símbolo alardeado de uma evolução pessoal e o real desejo de mudança, a peça publicitária ainda se vale de um uso quase criminoso de recursos de inteligência artificial para recriar uma intérprete que, possivelmente, jamais participaria de uma ação comercial desta natureza. Se há algo que muda, é o desejo por visibilidade e dinheiro.

 

 

O que este comercial nos mostra? Primeiro, a total anuência de um público imbecilizado e hipnotizado por efeitos especiais temerários. Segundo, a absoluta ingerência do capital sobre a memória, o afeto e as lembranças, se permitindo, através de sua força massiva de divulgação, distorcer fatos e sentidos, num cabo-de-guerra covarde e desleal. Lamento dizer isso, mas esta peça publicitária é horrorosa e lamentável. Pelo menos, os responsáveis por ela, bem como os herdeiros de Elis Regina e Belchior, ficarão em suas casas, guardados por Deus, contando o vil metal por muito tempo.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

9 thoughts on “O grotesco comercial da Volkswagen com “Elis Regina”

  • 13 de julho de 2023 em 20:11
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    Um dos melhores comerciais que já vi, antes foi da Tim e nas comerciais das cervejas ( tartaruga). É uma falta de criatividade, esse me fez parar para assistir, que é a missão do marketing. Essa mesma marca consegui fazer o mesmo com o Pollo.

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  • 12 de julho de 2023 em 21:23
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    Já não tenho mais paciência para ler intelectualoides que usam suas palavras para polemizar tudo. Tem que ser do contra sempre, assim se sentem os únicos seres pensantes. São as tais pessoas nefastas. Grotesco!

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    • 13 de julho de 2023 em 15:17
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      Boa, Emanuela. O negócio é consumir sem refletir. Boa sorte.

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  • 11 de julho de 2023 em 18:39
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    Que pegada dura com um comercial que a gente sabe para que serve. Não me sinto imbecilizado por ter gostado não apenas da inserção da Elis junto à filha, mas por trazer uma música boa (finalmente), cujo contexto de sua criação foi desviado sutilmente e quem se importa? Deveriam vomitar revoltas anti-capitalistas ou aclamar por sentimentos humanos equilibrados saudosistas de gerações que acompanharam estes 70 anos?
    Quando Natalie Cole utilizou imagens de seu pai para vender um dueto impossível, assim como Cazuza cantando virtualmente do além com o Barão ou qualquer outra aparição de respeito que se façam presente para deleite de alguns fãs mais carentes devem ser condenados?
    Se a família aceita por acreditar, sei lá, que a memória se estenderá (apesar da grana) que mal há?
    Não é porque a artista está morta está santificada. Se sua imagem for tratada com respeito o que eu teria a ver com isso?
    Se ganhar grana em cima de artistas fosse pecado fico imaginando todos estes livros e filmes que trazem biografias próximas da realidade cairiam no colo dos Torquemadas da vida e nos privariam, além de nos ofender, de nossa liberdade de escolher o que nos agrada.

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    • 13 de julho de 2023 em 15:18
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      Que pena, Alexandre. Você não entendeu nada do texto.

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  • 11 de julho de 2023 em 13:58
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    Grotesco por que? Por acaso a família da Elis não foi consultada? Por acaso não receberam cachê? Só mesmo um ser desumano para querer tirar do ar uma obra-prima dessas! Imbecilizado é que escreve um texto tão imbecil! Será que vocês nunca viram o vídeo de Nathalie Cole cantando “Unforgetable” com o seu já falecido pai Nat King Cole? E isso foi em 1991! Será que ninguém sabe disso? Será que o Brasil é tão atrasado assim?

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    • 13 de julho de 2023 em 15:19
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      Richard, que pena. Você não entendeu nada do texto e, antes que eu me esqueça – nossas palavras não querem tirar nada do ar. A gente apenas reflete sobre as coisas. Boa sorte.

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  • 11 de julho de 2023 em 12:41
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    Muito boa essa reflexão crítica! Talvez já não seja mais de espantar a imbecilidade do público, o desconhecimento histórico, a adesão impensante à conteúdos massificantes e distorcidos impulsionados pelo fascínio barato das novas tecnologias digitais. No mundo da indústria cultural de massa o discernimento não é vendido como encantamento aos olhos e muito menos à mente.

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    • 13 de julho de 2023 em 15:20
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      Exato, Santiago. As pessoas lutam e defendem com unhas e dentes o direito à imbecilização sem culpa. A gente não compartilha com isso.

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