Quatro discaços de Alt. Country em 2023

 

 

Eu confesso: o country alternativo dos anos 1990 já foi minha menina dos olhos. O artefato que despertou isso em mim foi o primeiro álbum do Wilco, “A.M”, lançado em 1995. Aquela capa maravilhosa mostrando um velho rádio, o fundo vermelho, a resenha elogiosa na ShowBizz, e a interminável espera até conseguir um exemplar do disquinho em tempos pré-Internet, pré-cartão de crédito internacional…Todos esses fatores contribuíram pro amor quase imediato pela música do grupo de Chicago, quando ela se tornou disponível e abriu caminho para mais bandas e artistas do estilo. Logo vieram Son Volt, Jayhawks e Whiskeytown, todos mais tradicionais que o próprio Wilco e igualmente interessantes. Gente que gostava de punk e country ao mesmo tempo, com capacidade para escrever letras que falavam de relacionamentos naquele meio de anos 1990, vendo tudo mudar diante dos próprios olhos, no último momento em que o mundo girava a 33 rpm. Pouco depois, passamos pra 45, 78 e sabe-se lá o quanto estamos hoje.

 

 

O fato é que o Alternative Country parecia meio fechado. Uma vez absorvido, a gente parecia correr atrás do próprio rabo, era algo de curto alcance. Talvez por isso, o Wilco tenha se afastado do estilo com o passar do tempo, mesmo caminho tomado pelo Jayhawks, mesmo que com menor intensidade. O Whiskeytown, que tinha um certo Ryan Adams nos vocais e criação, chegou ao final no início dos anos 2000 e Adams iniciou uma celebrada carreira solo, também deixando o estilo para trás gradativamente. E o Son Volt, espécie de irmão do Wilco, pois também era fruto de uma ancestral banda chamada Uncle Tupelo, que encerrou atividades em 1993, entrou em hiato após lançar três álbuns entre 1995 e 1998. Ou seja, tudo indicava que o “alt.country” era mesmo uma efeméride estilística. Felizmente, não. O estilo nunca deixou de existir, mas vem passando por um processo de enriquecimento estético ao longo dos anos, algo que comporta gente como My Morning Jacket, Fleet Foxes, Father John Misty, além destas quatro bandas mencionadas. Sim, porque Jayhawks e Wilco nunca encerraram suas atividades; Ryan Adams, vez ou outra, mostra-se um alt.countryman inescapável e, desde meados dos anos 2000, o Son Volt retomou sua carreira, tornando-se hoje, 2023, talvez o grande portador desta tradição noventista. Não por acaso, ele é responsável pelo primeiro destes quatro álbuns que escolhemos para chamar e sua atenção para este novo, robusto e multifacetado alt.country vigente.

 

 

Com “Day Of The Doug”, o Son Volt (que ilustra a foto principal da matéria), liderado por Jay Farrar, presta uma homenagem ao cantor, guitarrista e compositor texano Doug Sahm, que já era querido dele desde os tempos de Uncle Tupelo, no início dos anos 1990. Desde o falecimento de Sahm em 1998, vários tributos foram prestados e torna-se fato absolutamente natural que o Son Volt venha com o seu, mesmo tanto tempo depois. São quatorze canções endiabradas e produzidas para manter o groove meio blues, meio country dos originais, as temáticas de amor à vida, à alma gêmea e à diversão como molas mestras da vida e, claro, a esbórnia etílica-existencial que pode vir no bojo de tudo isso. Jay Farrar adquiriu uma caixa de gravações raras de Doug durante a pandemia e passou boa parte de seu isolamento social pensando em como se apropriar delas com o Son Volt e o resultado é totalmente fiel ao espírito dos originais e ao que a gente poderia chamar de “alt. country raiz”, ou seja, calcado no enroquecimento guitarrístico da pegada country, depurando-a de excessos e adicionando coração, vivência e sensibilidade. Daí temos maravilhas como “Sometimes You’ve Got To Stop Chasing Rainbows”, “Beautiful Texas Sunshine” e a soberba, sensacional “Float Away”, que parece de almanaque. Uma lindeza que referenda a irrepreensível discografia do Son Volt de 2009 pra cá.

 

 

 

Saindo do clima “roots” e abrindo as possibilidades de fusões do alt. country, chegamos no sensacional trabalho do grupo Deer Tick, de Rhode Island. Com a liderança de John Joseph Macauley, o grupo iniciou suas atividades em 2004 e seu oitavo álbum, “Emotional Contracts”, é sua pequena obra prima. As dez belas canções que integram o disco partem de um alicerce alt. country clássico e enveredam por abordagens correlatas, mostrando influência de Tom Petty, Beatles, AOR dos anos 1980, com resultados maravilhosos e muito interessantes. O timbre vocal de Macaulay tem a manha e os arranhões que surgem numa suposta highway emocional, que mais tira do que acrescenta, e faz com que estes cantores assumam uma condição de especialistas nos problemas sentimentais que afligem grande parte dos mortais. A beleza pode estar no groove irretocável de “Forgiving Ties”, no tompettismo de “Grey Matter”, na rasgação de “If I Try To Leave”, nas batidas marciais que se casam com violões e baixo na introdução de “Once In A Lifetime” ou, quem sabe, na melhor faixa de todo o álbum, a arrepiante “My Ship”, uma balada iluminada, que evoca um fleetwoomaquismo insuspeito, que mais parece uma brisa batendo nas velas de um saveiro emocional. Coisa finíssima e de gente que sabe o que faz.

 

 

 

 

A próxima parada no nosso circuito nos leva ao álbum homônimo de James & The Giants, na verdade, o nome que James Jackson Toth encontrou para seu projeto alt. country. Após 17 anos lançando disco mais para o folk psicodélico como Wooden Wand, Toth resolveu abraçar as conexões dylanescas neste trabalho, saindo-se com um belíssimo exemplar lírico e belo dentro da expansão do estilo. Para entender o que estou dizendo, vá direto à segunda faixa, “Hall Of Mirrors”, que é um misto de canção do Oasis com Jayhawks fase “Tomorrow The Green Grass” e você terá a ideia exata do que estamos dizendo. Tem arranjo de cordas, pianos e órgão adornando uma melodia feita meticulosamente em laboratório, uma lindeza mercurial que só faz ganhar mais corpo à medida que vamos avançando sobre o percurso sonoro. Em “Don’t Let The Love Make A Liar Out Of You” – cujo título já é maravilhoso – Toth incorpora um naipe de metais maravilhoso, que entra de mansinho no todo sonoro e acrescenta profundidade e lindeza. Este naipe também está presente em “Friends Forever”, uma balada dilacerada sobre o que acontece depois que o amor se vai e deixa as pessoas sem saber que papel tomarão dali pra frente. Só quem viveu isso, sabe como é complicado. “Bless This Mess” encerra o caminho com mais um conto de belezura emocional numa moldura sonora perfeita.

 

 

 

 

O último ponto do nosso ônibus fica distante dos Estados Unidos, situando-se precisamente em Adelaide, Austrália. Lá reside o sensacional Ryan Martin John, cujo novíssimo trabalho, “Goodness Gracious Graceless”, é um compêndio de como se fazer um disco belíssimo, não só de correlações alt. country, mas também incorporando influências que as transcendem, como Neil Young, Beatles e até Nick Drake, tudo num amálgama que parece feito à mão, com precisão de ourives. Já de cara, “Bourbon St.” mistura pianos com slide guitar para sonorizar a voz doce e vulnerável de Ryan e isso é só o começo. Ryan não tem a pegada clássica do alt. country mas é um cara intuitivo e sensível, abrindo o coração para influências que acabam se adequando a esta nova cara do estilo que estamos defendendo aqui, soando muito original e espontâneo. “Goodness…” é um trabalho sem qualquer falha, verdadeiro bálsamo para ouvidos cansados. O single “INFJ” traz um clima de Buffalo Springfield revisitado que soa belíssimo, enquanto “Sunburn” é uma ótima faixa do Jayhawks que eles nunca gravaram. A faixa-título incorpora cordas e uma guitarra chorona que faz carinho no coração, enquanto “Gridlock” começa tristonha e reflexiva, abrindo tons para paisagens mais amplas. “I’ve Been Waiting” mistura country rock dos anos 1960 com cadência pop perfeita, assim como “Party Song”, mas, enquanto a primeira é doce e romântica, a segunda é mais psicodélica. Por fim, “Adie” é uma balada violeira e neilyoungiana de primeira linha, que surge no fim do caminho.

 

 

 

Estas quatro sugestões servem para termos em mente o quanto a música pop evoluiu e se transforma, mesmo os estilos mais clássicos e solidificados. São trabalhos cheios de ótimas canções, feitos por gente que entende do assunto. Recomendamos fortemente.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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