O Grammy e a banalização da crítica musical

 

 

Ontem eu comecei a ver a festa do Grammy pela TNT. No meio da premiação, mudei de canal e fui ver a sensacional série “The Outsider”, na HBO. É o padrão de transmissão dos grandes prêmios – Oscar, Emmy, Globo de Ouro – com tradução simultânea e um ou outro comentarista discreto. Qual não foi minha surpresa quando vi uma “mesa redonda” de “youtubers” ou “influencers”, ou algo no gênero, falando sobre os possíveis vencedores e as apostas. Entre eles estava Karol Conká, que parece ter um livre trânsito entre eventos deste tipo, o que é bom, visto que a moça é legal e inteligente. O resto, pelo amor de Deus. Devem ser conhecidíssimos entre uma parcela significativa da audiência potencial do evento, mas, se eu fosse me guiar pelas recomendações daquelas pessoas, jamais compraria um disco ou ouviria algo.

 

 

Mas, depois a gente volta aos “críticos”. Vi o restante da premiação agora pela manhã.

 

O Grammy transcorreu normalmente. Homenagens de praxe, cafonália habitual, superficialidade total. Como triste exceção da noite, a reverência a Kobe Bryant, ex-jogador da NBA, morto ontem num acidente de helicóptero, no qual perderam a vida outras oito pessoas, entre elas, sua filha Gianna, de 13 anos. Com Alicia Keys no comando, usando sua boa vibração hippie-Brooklyn, o Grammy celebrou o que a indústria americana de música tem promovido há tempos, ou seja, a música para a nossa sociedade atual. Eu falava com minha esposa, que soltava muxoxos a cada indicação ou número musical que surgia na tela:

 

– A música reflete esse mundo nosso. Não há como ser diferente disso.

 

Minha esposa esperava uma reação muito mais pessoal do que, digamos, acadêmica da minha parte e se irritou ainda mais. Ela é dessas pessoas apaixonadas por música, que lembra do tempo em que gente como Simon & Garfunkel, Carpenters, Michael Jackson, entre outros, abiscoitavam vários Grammys por ano. Essa época já vai longe no tempo. Até mesmo a prevalência do pop-rock sobre outros estilos perdeu-se há anos. O rap é o ritmo que domina a indústria e a mente da juventude planetária. E o pop que se ouve é derivado dessa lógica, ou seja, ele é eletrônico, grudento, feito para capturar o jovem que vive a vida com base nos likes que recebe em postagens no Instagram. Não dá pra ser diferente.

 

A boa notícia é que há outros tipos de música popular sendo feitos no planeta e todos estão razoavelmente ao alcance da mão, via serviços de streaming e outros usos da Internet. E a grande WWW transformou a música e o ato de ouvi-la, também abriu espaços para podemos encontrar caminhos que nos levam ao que queremos ouvir. Seja feito hoje, seja feito há cinquenta anos. O Grammy, bem, ele não é uma premiação em que somente o talento do artista é levado em conta. É medido seu poder de penetração, sua relevância para o público e para a indústria, a projeção que teve na mídia, enfim, uma série de instâncias que podem ou não depender de talento e personalidade.

 

Felizmente, havia duas concorrentes a várias categorias que tinham, justamente, talento e personalidade, se levarmos em conta que estamos em 2019/20. Lizzo e Billie Eilish. Pelo que pude ver, apenas estas duas têm capacidade para vencer um outro traço característico do pop, levado às últimas consequências pelo sistema: a descartabilidade. A música, assim como vários outros itens da nossa vida, se adaptou para a sociedade de mega-consumo em que vivemos. Falo, claro, do mainstream, que nunca foi tão main e tão stream. É uma avalanche de canções e novos artistas diários e insípidos, numa corrida espermatozóica para atingir o objetivo de ultrapassar a barreira da primeira audição, de chegar a mais e mais gente pelo mundo afora. Vejam, há canções no Spotify e vídeos musicais no Youtube que já ultrapassaram a barreira do bilhão de audições. É muito, gente.

 

Lizzo e Billie Eilish – e a inglesa Yola – são provas de que há coisas interessantes para ouvir, mesmo no mainstream. A primeira é uma herdeira da grande árvore de cantoras negras, que já teve em Billie Holiday e Aretha Franklin frutos dourados, de diferentes tamanhos e sabores. A segunda é branca oriunda do fracasso do american dream, nascida e crescida no subúrbio, lidando com a mega-massificação da informação e dos signos de sucesso e triunfo sobre a coletividade que tenta te fazer bullying. E a última, inglesa, mas negra e fã de pop americano, caiu nas graças do produtor Dan Auerbach e emprestou seu vozeirão pra fazer um disco de pop mais vintage, do jeito que o guitarrista do Black Keys adora fazer. A gente falou dela nesta resenha aqui.

 

Das homenagens, pouco se salvou. Gostei do tributo ao Prince, com Usher se esforçando para fazer 1/10 do que o anão púrpura de Minneapolis fazia. Também gostei da cubana Camila Cabello cantando “The Main Man” em homenagem ao pai e, sim, da presença de Aerosmith e Run DMC reeditando sua colaboração histórica de 1986, quando refizeram “Walk This Way” para o álbum do trio de rap novaiorquino, “Raising Hell”. Tal movimento reaqueceu a carreira do Aero, que voltou dos mortos e tornou-se uma das bandas mais celebradas de rock na década de 1990.

 

E isso aí foi o Grammy. Amanhã eu te desafio a lembrar quem ganhou o quê, mas recomendo muito que você ouça o disco da Billie Eilish, “When We Fall Asleep, Where Do We Go?”. A gente resenhou aqui e deu cotação de quatro estrelas vermelhas.

 

Ah, quase esqueço da crítica musical. Ora, numa indústria de zibilhões de dólares e necessidade de consumo constante, uma crítica isenta e livre para emitir opinião é tudo o que NÃO se quer, certo? Como assim você vai falar mal de “ícones” como Beyonce, por exemplo? Ou dizer, sei lá, Tyler The Creator NÃO é um gênio? A necessidade de crítica continua existindo, mas é importante que ela não atrapalhe a fruição do público, logo, que tal aproximá-la do público na figura de influenciadores digitais? Pois é isso que temos. São parte do público, colocada numa posição de destaque, com a função de emitir opinião crítica. E funciona. Bem, pra eles.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

3 thoughts on “O Grammy e a banalização da crítica musical

  • 28 de janeiro de 2020 em 17:28
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    Provavelmente se eu tivesse 15 anos estaria ouvindo esse tipo de artista, então apenas escuto por curiosidade e acompanhei o Grammy com distanciamento critico, alias eu preferiria o Bruno Mars em homenagem ao Prince do que o Usher!!

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  • 27 de janeiro de 2020 em 16:11
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    Mantenho a minha opinião: música irrelevante, descartável, sem essência. Este é o Grammy há muitos anos. Tenho pena dessa geração de jovens que só escuta esse lixo musical e considera velho o que foi feito nos anos 70 e 80.

    P.S. Eu sou a mulher do CEL. 🙂

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  • 27 de janeiro de 2020 em 13:05
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    A internet esvaziou a critica musical. Os discos fiam disponíveis imediatamente, as pessoas podem ouvir e avaliar. Antes valia a palavra do crítico com quem o leitor se identificava. Quando passei para o jornalismo online em 2001 achei uma grande vantagem poder anexar na materia uma faixa que tinha que ser pedida à gravadora. Com o tempo escancarou tudo, embora haja ainda um publico residual. Pessoas ate hoje perguntam minha opinião sobre determinado álbum. E alguns artistas também.

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