“Les Misérables” e o capitalismo que não deu certo

 

 

Vários filmes lançados em 2019 mostram uma verdade contundente: o capitalismo errou e precisa de substituição/correção urgente. “Bacurau”, “Parasita”, “Coringa”, todos eles, cada um a seu modo e de acordo com as idiossincrasias de seus locais de origem e produção, mostram que a injustiça do sistema chegou a um momento de agonia profunda. A desigualdade, principal reflexo acumulado do sistema, atingiu um nível insuportável, fazendo ruir os próprios preceitos sociais, exigindo uma adaptação para a terrível realidade instalada. O francês “Les Misérables” é mais um longa-metragem que detecta e esfrega na cara do espectador o abismo humano e social que vivemos hoje.

 

Dirigido por Ladj Ly, “Les Misérables” venceu o Prêmio do Júri no último Festival de Cannes e está em cartaz nos cinemas brasileiros. Também é o representante francês no Oscar. A história tem traços do livro de Victor Hugo, que recebeu uma aclamada versão para o teatro e também transformou-se em longa-metragem há alguns anos, com Russell Crowe e Anne Hathaway no elenco. A obra de Ly, no entanto, resgata o clima do livro e, ao invés de situar a ação na Paris pré-Revolução Francesa, arremessa o espectador para o ano de 2018, logo após a França vencer a Copa do Mundo da Rússia.

 

A ação transcorre na periferia de Paris, habitada por contingentes populacionais distintos: há umas três gerações de negros e árabes, oriundos da desagregação do mundo colonial francês na África, vindos de lugares como Costa do Marfim, Senegal, Mali, entre outros, como ciganos e outros árabes e negros, refugiados, ilegais…Só não vemos franceses brancos e gauleses entre essa gente. Aliás, vemos, se levarmos em conta as rondas da polícia no local, personificadas pelo trio de oficiais Chris, Gwada e o novato Ruiz, que mudou-se para Paris, vindo do interior, visando ficar mais perto do filho. O filme mostra um dia na ronda desses oficiais neste verdadeiro habitat social à parte da cidade. Lembra um pouco “Dia de Treinamento”, de Antoine Fucqua, que tinha Denzel Washington e Ethan Hawke como os policiais de Los Angeles. Mas é pior, terrível e muito mais avassalador.

 

O que “Les Misérables” faz é mostrar como foi necessário para aquela sociedade-dentro-da-sociedade moldar todo um código de conduta para sobreviver em meio ao vácuo deixado pela ausência de políticas públicas e assistência para as pessoas de lá. Desemprego, falta de investimento público, ausência absoluta de oportunidades, tudo isso levou as pessoas a “improvisarem” suas vidas, resultando numa mistura de subemprego – que o sistema agora chama de empreendedorismo – crime, sofrimento. Com isso, ascenderam ao “poder”, figuras como o “Prefeito”, que organiza o camelódromo local e cuida para que as crianças da comunidade não façam nada de muito errado. Também existem o ex-criminoso Salah, que sabe de tudo o que acontece nas redondezas, e o Sovina, que tem contatos no submundo e fornece mercadorias para consumo “alternativo”. Todos eles têm acordos de diferentes níveis com a polícia, o que mantém aquele lugar completamente estagnado em sua própria miséria. O roteiro do filme acompanha uma incursão da equipe policial visando resolver um caso pitoresco de furto, que vai resultar numa série de equívocos e terminará por gerar uma reação inesperada de um contingente até então desprestigiado da comunidade.

 

O que mais espanta em “Les Misérables” é o final acachapante. Num ano de filmes com tantos “finais” intensos, este certamente é o mais terrível e assustador. As cenas me fizeram lembrar de uma disciplina recente que cursei no Doutorado de História na UFF, ministrada pelo venerável Daniel Aarão Reis, que investigava as revoluções dos anos 1960 tendo por base os parâmetros lançados pela Revolução Russa de 1917. Em algum ponto das leituras e aulas, Daniel Aarão mencionou o conceito de “forças frias” e “forças quentes” dentro da sociedade. As primeiras seriam representações estagnadas, porém arraigadas dentro de um determinado contexto social, provavelmente ineficazes e encampadas pelo sistema. As segundas, ao contrário, seriam forças novas, pujantes, sintonizadas com as demandas da sociedade e capazes de transformação. Ambas das forças – frias e quentes – podem ter espectros políticos de esquerda e de direita e tal ideia surgiu para comparar as representações políticas nos anos 1960, especialmente para caracterizar o surgimento da “nova esquerda” naquele tempo, materializada pelos estudantes que marcharam em 1968 na mesma Paris – e, a partir dela, em vários locais do mundo.

 

Ver o final de “Los Misérables” me fez ver a quentura imensa de uma força social que está sendo gestada pela injustiça do sistema, diante dos nossos olhos, movida pelo ressentimento, pelo rancor, pela raiva e pela corrupção de valores básicos. Numa terra que se orgulha da liberdade, igualdade e fraternidade, a ironia da ausência absoluta destes preceitos é só mais uma cereja no bolo deste longa. Em termos básicos, mostra, sem qualquer alegoria, o nosso colapso em curso, a menos que algo não seja feito pra ontem.

 

 

Les Misérables – França, 2019
Direção: Ladj Ly
Elenco: Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djibril Zonga, Issa Percia, Al-Hassan Ly, Steve Tientcheu, Almany Kanoute, Nizar Ben Fatma

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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