Gabigol x witzel
Você deve ter visto: Gabigol, em campo, após a conquista da Libertadores, no sábado, esnobando o governador do Rio, wilson witzel. A cena era mesmo vergonhosa: o craque comemorava, daí vem o balofo governador, se ajoelha diante do craque, que toma outro rumo, deixando o governante no vácuo. Quem é de esquerda vibrou. Quem é de direita começou a procurar indícios de que Gabigol não era esse ator politizado, este ser progressista. Em alguns momentos, lá estava uma foto de witzel e Gabigol, já após o jogo, sorrindo. E os comentários: Gabigol é bolsominion! Gabigol é de direita! E por aí vai. E por aí foi. Afinal, o que é isso? O craque precisa ter um posicionamento político para ter seu valor reconhecido? E o futebol? Precisa ser politizado?
Bem, lamento dizer que tudo é politizado, tudo é política. Nem sempre é da ordem político-partidária, com representações formais, mas a política é inerente ao ser humano e às suas manifestações em todos os campos da vida social/cultural. Logo, sim, o futebol é político e as posturas de atletas como Gabigol também são. E, óbvio, as de witzel também. Por conta da relevância que o Flamengo readquiriu neste ano de conquistas em campo – o time foi Campeão estadual, nacional e intercontinental – muito se falou sobre as manifestações políticas da instituição Flamengo. É tudo muito complicado porque, sim, o time é parte do clube, mas a história da instituição é maior que a dos homens. É sempre assim, em todos os esportes coletivos, ainda que todos eles produzam ídolos de tempos em tempos.
Como explicar Zico, o maior ídolo da história do Flamengo, ser assumidamente de direita? Isso invalida suas conquistas em campo? Isso coloca dúvidas sobre sua importância para o Flamengo? Isso melhora o que ele fez? Depende de como se olha o futebol. Pessoas politizadas tendem a ver importância/relevância nisso, outras não. O futebol opera em vários campos simultâneos, sendo um deles, o dos significados/representações. Para a maioria esmagadora de torcedores do Flamengo, não importa o que Zico pensasse, apenas que ele envergasse as cores do clube no mais alto patamar. E ele o fez, levantando o Campeonato Interclubes em 1981. Até hoje, este é o ponto mais alto em que a bandeira do Flamengo tremulou. Se Zico votou em aécio neves ou integrou o governo collor ou, mais recentemente, defendeu o governo bolsonaro, pouco importa para muita gente.
Confesso que importa para mim, que enxergo a política de outra forma e dou a ela um papel preponderante no trato social. Eu preferia que Zico fosse como Sócrates, o doutor corintiano – que também jogou no Flamengo – que defendia posicionamentos políticos à esquerda, que protestava em favor das liberdades. Mas não. Ele não é. Como faço para não me emocionar com os gols que ele marcou com as cores do meu time? Não faço. Afinal de contas, é para o Flamengo estar acima disso tudo. E, se eu sou rubro-negro, não posso ignorar nada disso. Sendo assim, prefiro, num exercício às vezes doloroso – separar os âmbitos desportivo e social. Nem sempre consigo, mas tento e vivo assim.
Sobre o futebol ser político, ainda vale lembrar que os governantes, os agentes estatais, os homens que são eleitos, ou tomam o poder, sabem muito bem a força do esporte como mobilizador de massas. E o usam. É só lembrar de gente como o falecido Eurico Miranda, ex-mandatário vascaíno, eleito e reeleito deputado federal pelo Rio, usando a caravela do clube como símbolo de sua campanha. Ora, se as pessoas elegeram bolsonaro, por que não elegeriam Eurico, que teve mitológicas participações na política das confederações de futebol – fluminense e nacional – em seus tempos de glória? Vascaínos de esquerda hão de ter problemas semelhantes aos rubro-negros de esquerda, ao olhar para o velho deputado. Mesmo sendo o que foi, o Vasco, sob Eurico, teve seus dias de apogeu no âmbito nacional e estadual, chegando a disputar o Mundial Interclubes, sendo derrotado pelo Real Madrid na final. Voltou como … vice.
O futebol esteve nas mãos dos ditadores brasileiros dos anos 1970. Garrastazu Médici, que executou o AI-5, era gremista. Dizia que também era rubro-negro. Seu governo manipulou as ações da Seleção Brasileira de Futebol no México, usando o tricampeonato mundial de 1970 a favor do regime. Os craques tinham esta noção? Imagino que sim. João Saldanha, técnico do time – substituído às vésperas por Zagalo – era comunista assumido. E era botafoguense ferrenho. Como explicar as cirandas de times e posições políticas? Médici era gremista, assim como Leonel Brizola e Getúlio Vargas. Como faz então?
O atual presidente do país sabe a força que o futebol tem. E o utiliza descaradamente, vestindo camisetas de todos os clubes, se convidando para os jogos, se pronunciando sobre os resultados. Ele sabe o que está fazendo. Os jogadores gostam de sua simplicidade truculenta. Muitos endossaram sua campanha e apoiam seu governo, porque ele opera na base das soluções violentas, simples, desiguais, tomadas sem cuidado, privegiando a poucos. Parece tudo uma questão de dar uma porrada mais forte, de acabar com a frescura alheia. De fazer todos andarem na linha, militarmente, sem tempo para pensar. Talvez seja mais comum e natural se levarmos em conta a infância/juventude pobre, sem oportunidades que esses jogares tiveram, na qual precisaram se superar para conseguir o que conseguiram. Lembrem-se é o campo das representações.
Sobre Gabigol e witzel, prefiro ficar com algumas informações prévias sobre o atacante rubro-negro. Fã de rap, especialmente Racionais MC e Emicida, Gabriel Barbosa nasceu em São Bernardo do Campo. Disse em entrevistas passadas que era complicado viver em sua comunidade, uma vez que os tiroteios eram frequentes. Não raro, ele e sua família estavam debaixo da cama, debaixo da mesa, evitando as balas. Foi cedo para o Santos, transformou-se em “menino da Vila”, estreando, justamente contra o Flamengo, em 2013. De lá pra cá, Gabigol tornou-se artilheiro, mas não parece ter esquecido suas origens. Quando fez três gols e respondeu à brincadeira do Fantástico, escolhendo música, pediu uma do Emicida, seu ídolo. Também foi o rapper paulista quem lhe presenteou com a camisa comemorativa de 200 jogos pelo Santos, em 2018.
Prefiro pensar em Gabigol como um jovem que sabe o suficiente sobre as comemorações de witzel a respeito das mortes nas comunidades do Rio. Que desaprovou a festa do governador quando a polícia fuzilou um sequestrador na Ponte Rio-Niterói. Que sabe o significado de seus gols para um número gigantesco de rubro-negros pobres, para os quais o time é a única fonte de felicidade gratuita possível.
Para o Flamengo ter um ano perfeito, só falta resolver a questão jurídica envolvendo o trágico acidente do início do ano, no qual vários jovens jogadores da base rubro-negra foram mortos num incêndio. A instituição Flamengo deve isso às famílias e à torcida, que não se esquece do ocorrido. O que não é admissível, é ver a manifestação oportunista de torcedores de outros times, aproveitando a tragédia, para turvar a conquista de títulos, colocando em dúvida a idoneidade e a justiça. Não se importam com as vítimas, falam do assunto como se fosse o resultado de um jogo.
Em tempo: o Flamengo tem torcedores lamentáveis na cena nacional. Além do witzel que, não satisfeito em ir a Lima, se convidando para o jogo contra o River Plate, embarcando no mesmo vôo do time e desfilando em carro aberto durante o domingo, dia 24/11, ainda temos o ex-deputado eduardo cunha e aquele outro deputado que, ao lado do próprio witzel, quebrou a placa com o nome da vereadora Marielle Franco que, por sua vez, também era torcedora do Flamengo. Como eu disse, é melhor que cada um tenha o seu juízo de valores para abordar a questão.
PS: minúsculas intencionais
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Pois é, Marcello. Entendo totalmente o teu ponto de vista e concordo com ele. Às vezes é complexo separar, mas imagino – tristemente – a quantidade de palmeirenses encantados com a atitude dele. A História está aí pra gente ressignificar esses discursos e posturas. Abraço.
Entendo quem deixa de lado a posição política do jogador/clube e foca somente na parte futebolística mas confesso que esse foi o ano que menos torci pro meu time do coração (Palmeiras) desde aquele fatídico dia que Felipe Melo e companhia chamou o Bolsonaro pra receber a taça de campeão brasileiro. Creio que no futuro essa imagem será lembrada com vergonha e por coincidência depois disso o time não ganhou mais nada