O disco novo da St.Vincent é isso tudo?
St.Vincent – Daddy’s Home
Gênero: Art rock
Duração: 43:15 min
Faixas: 14
Produção: Annie Clark e Jack Antonoff
Gravadora: Loma Vista
O bordão neoliberal/burrista “menos é mais” definitivamente não se aplica ao novo álbum de St. Vincent. Vai ser engraçado ver os mesmos defensores da “objetividade”, da “concisão”, do “instrumental enxuto” tecendo loas a “Daddy’s Home”, o sexto trabalho da persona artística de Annie Clark. Sim, porque o álbum é um exemplo de uso inteligente e bem pensado de um número absurdo de referências sonoras, todas devidamente domadas e colocadas a serviço da verve da cantora. Tem funk setentista, David Bowie, Pink Floyd, psicodelia, Velvet Underground, glam, entre outras coisas. Tudo aqui é cuidadosamente montado, disposto de modo correto, visando oferecer uma versão sonora daquele tour da Fantástica Fábrica de Chocolates, no qual Willy Wonka vai levando as crianças e seus parentes pelas entranhas de suas instalações, com um propósito definido. Este disco é mais ou menos assim: um passeio pelas referências múltiplas, com St.Vincent no comando da tour, levando o ouvinte exatamente onde ela quer ir.
O título faz alusão à soltura do pai de Annie, que cumpriu dez anos de prisão por fraude na bolsa de valores. Sim, é isso mesmo. O que poderia ser apenas um título baseado numa expressão corriqueira em inglês – papai chegou – ganha uma dimensão múltipla, exatamente porque nada pode ser exatamente o que parece neste caminho musical que a cantora oferece. Sua voz não faz malabarismos desnecessários, mas surpreende em agudos e demonstrações inequívocas de alcance, mostrando uma certeza: Annie sabe exatamente o que está fazendo. Se ela percorreu o mundo na turnê de seu disco anterior, “Masseducation”, em figurino deliberadamente sexy e – segundo ela – extremamente desconfortável, a onda neste novo trabalho é adotar um visual decadente, de loura falsa, meio detonada, meio esgotada na manhã seguinte a uma noite de doideiras. É a tal “decadência com elegância”, que comporta a alternância de paisagens sonoras que vão surgindo ao longo das canções.
Não pode haver maior exemplo do que a faixa de abertura, “Pay Your Way In Pain”, que sintetiza, em pouco mais de 30 segundos, nuances de um piano à la Bowie, embocando num riff de teclado que poderia estar em “Here Comes The Rain Again”, dos Eurythmics, para depois retornar ao cânon bowieriano, com o funk de “Fame” evocado ao longo da faixa. Esta é a primeira das várias canções sensacionais que o álbum oferece, dentre as 14 presentes (entre elas, três vinhetas). Na faixa-título, em meio a um andamento que mistura Steely Dan e funk, ela canta que “assinou autógrafos na sala de visita enquanto esperava pela última vez, detento 502”, evocando o episódio da soltura do pai e a confusão entre a filha que o espera a superestrela da música. Logo em seguida, Annie abandona a roupa anterior e mergulha em “Live In The Dream”, que poderia ser entendida como uma bela homenagem a “Us And Them”, faixa de “Dark Side Of The Moon”, do Pink Floyd safra 1973. Tudo aqui é lento, belo e contemplativo, na medida certa.
O passeio prossegue: “The Melting Of The Sun” tem algum andamento funky setentista submerso no arranjo, provavelmente nos teclados, abrindo espaço para a impressionante “The Laughing Man”, que vem em câmera lenta, com uma atmosfera climática que pode evocar Velvet Underground ou algo tão barra pesada quanto, mas St.Vincent consegue transformar a canção em uma criação totalmente própria e cheia de beleza. “Somebody Like Me” evoca violões folk, bateria aerodinâmica, meio que uma cruza entre Radiohead recente e algo mais pop, clássico, setentista. E “My Baby Wants A Baby” tem cara de canção dos anos 1960 repaginada, tanto que gastei bom tempo para ter certeza de que ela não é uma cover. O refrão é clássico, o andamento muda a todo tempo, conferindo ao arranjo ares de uma verdadeira belezura. “…At The Holiday Party” é uma espécie de inventário sonoro, brincando com alguns timbres que poderiam ser de Stevie Wonder, enquanto “Candy Darling” é outra visita ao nicho do Velvet Underground, dessa vez com mais sofrimento e dor.
“Daddy’s Home” é um mosaico sonoro. Bem projetado e executado, por uma artista que tem mostrado inequívoco talento e senso estético. Aqui St. Vincent ganha o prêmio querer abraçar um mundo de referências – e conseguir. Um dos grandes discos de 2021, sem qualquer dúvida.
Ouça primeiro: “Somebody Like Me”, “The Laughing Man”, “My Baby Wants A Baby”, “The Melting Of The Sun”, “Daddy’s Home”, “Living In The Dream”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.