O dia internacional informal do De La Soul
Já disse por aqui e repito: meu momento preferido do hip-hop compreende o fim dos anos 1980 e o ano de 1996. Neste tempo, o estilo produziu obras-primas, definiu parâmetros, reviu e ressignificou sonoridades black do passado através da difusão do sampling e, mais que tudo, criou uma identidade negra americana esclarecida, bem informada, conectada e moderna. Como parte determinante deste processo, o coletivo de artistas Native Tongue teve participação decisiva. Composto por A Tribe Called Quest, Queen Latifah, Jungle Brothers, pelo próprio De La Soul, entre outros, ele se notabilizou por promover informações e posturas que se conectavam com as origens africanas da comunidade negra americana, sempre procurando celebrar a vida – sem alienação – e valorizar informações adquiridas ao longo do tempo, sempre voltadas para a juventude.
Além dessa postura, digamos, sociológica, os artistas vinculados ao coletivo se notabilizaram por trabalhos modernos e instigantes, mas conectados com a arte do sampling e dos relatos da vida cotidiana de seus realizadores. Tudo isso de forma, digamos, positiva. O De La Soul, formado nos cafundós de Long Island, Nova York, foi um dos expoentes desse “novo rap” e surgiu com tudo em 1989, a bordo de sua estreia, “3 Feet High And Rising”, com o single “Me, Myself And I”. Dali até hoje, o grupo manteve-se ativo e, mais recentemente, sua colaboração constante com o Gorillaz foi notável. A chegada do catálogo do De La Soul aos serviços de streaming só não é motivo de celebração absoluta por conta do tom amargo que ganhou por conta da morte inesperada de Trugoy The Dove, um de seus fundadores, há poucos dias. Ele, Maseo e Posdnuos lançaram, ao todo, oito álbuns, sendo que a maior e mais importante parte deles, composta por 3 Feet High and Rising (1989), De La Soul Is Dead (1991), Buhloone Mindstate (1993), Stakes Is High (1996), Art Official Intelligence: Mosaic Thump (2000), and AOI: Bionix (2001) nunca havia chegado aos serviços de streaming. Hoje, dia 3 de março, essa injustiça foi corrigida.
Injustiça porque, além de sensacional, o De La Soul é influência definitiva para vários artistas do hip-hop atual, de Childish Gambino e Kanye West, de Kendrick Lamar a Tyler The Creator. Os caras forjaram uma maneira, digamos, desencanada de compor e escrever letras, criticando posturas violentas, especialmente no meio da década de 1990, quando bateram de frente com as visões atreladas ao rap como veículo de expressão para contos sobre consumo e venda de drogas, elogios à riqueza acima de tudo, ou seja, visões que contrariavam o que sempre defenderam em sua trajetória.
Dos álbuns que chegam ao streaming, o destaque fica para três pequenas joias de criatividade e, por que não, resistência. Dois deles, a estreia e o sensacional e perfeito “De La Soul Is Dead” (1991), são os mais conhecidos e celebrados. O quarto, “Stakes Is High”, talvez seja um dos melhores trabalhos do hip hop na década de 1990, por vários motivos, sendo o maior deles, o lançamento em meio ao domínio do então West Coast Rap, que tinha Dr.Dre como o maior expoentem além de Snoop Dogg e Notorious BIG, e que dava espaço para as letras calcadas na vida dura do gueto, bem como uma sonoridade mais arrojada e inovadora em relação ao que era feito então pela turma do East Coast Rap, com o próprio De La Soul à frente. Este álbum marcou a chegada de gente como J.Dilla – participando da produção do álbum – além das presenças de Common, Spearhead X e Zhane, mas, acima disso, solidificou o próprio De La Soul como o principal representante de uma outra forma de fazer rap, oposta ao que parecia soar dominante. Canções como a faixa-título, “Long Island Degrees”, “4 More” e o sucesso “Baby, Baby, Baby, Baby, Ooh, Baby” comprovaram isso.
Os seis trabalhos que chegaram ao streaming hoje mostram várias facetas de um grupo. O início colorido e revolucionário dos dois primeiros trabalhos, o experimentalismo do terceiro, “Buhloone Mindstate”, de 1993, que mostrou um De La Soul mais contido, além da tomada de posição do quarto, mencionado acima. Os últimos discos desta leva, Art Official Intelligence: Mosaic Thump (2000) & Bionix (2001), mostram um grupo tentando achar espaço em meio a um tempo que começava a acelerar além da conta. Os dois podem ser vistos como um trabalho único, dado o contexto de seu lançamento à época, mas, definitivamente, não estão entre o melhor que o grupo já fez, ainda que “Bionix” tenha um extenso grupo de fãs. O que importa mesmo é acessibilidade ao catálogo deste trio seminal do hip hop em todos os tempos, responsável por toda uma corrente estética, social e musical dentro do estilo. Não é pouco. Ouça logo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.