O Cristo da Mangueira já está na história
A Estação Primeira de Mangueira venceu o Carnaval do Rio de Janeiro ano passado com um enredo que falava de vários vultos negros da história do Brasil. E incluiu a vereadora do PSOL-RJ, Marielle Franco, entre eles. É importante que uma instituição brasileira como a Mangueira se disponha a emprestar sua visibilidade e importância a estes temas. Agora, ontem, há poucas horas, no Carnaval 2020, a escola de samba desfilou com um enredo que faz menção a Jesus Cristo.
Seria fácil e lamentável se a Mangueira embarcasse na noção atual do Cristo, a de uma instância espiritual-superior que representa o Deus católico e que, como manda o dogma da religião, seja motivo de observância de condutas, de normas, de cobranças, de punições e penas. Um replicador do toma lá-dá cá. Ou seja: sacrifique-se agora, viva pela eternidade. Sei bem que não é exatamente assim, mas a manipulação da imagem do Cristo se tornou uma das maiores pragas culturais e sociais do nosso tempo. Vemos uma série de representantes, atravessadores, intermediários, toda sorte de mequetrefes e seres de índole pra lá de duvidosa, se esbaldando nas interpretações do mito cristão. Não precisa ir longe, eles estão por toda parte: Marcelo Crivella, Edir Macedo, Bolsonaro, Trump, Malafaia, todos eles são pessoas que usaram/usam o Cristo para benefício próprio.
Mas, e se o Cristo voltasse à Terra? É uma das instâncias mais importantes da própria mitologia cristã. E se? Viria para nos fazer arrepender pelo que fizemos uns aos outros? Ao planeta? Ao próximo? A nós mesmos? Se sim, como ele seria? Um telepastor? Um Bolsonaro? Ou, guardando a mínima semelhança com o arcabouço histórico/místico da própria figura, um carpinteiro da Galileia? Qual seria o equivalente geopolítico de hoje? Um índio brasileiro? Um refugiado sírio? Um aborígene maori? Um rapper da periferia paulistana? Um moleque que trabalha numa boca de fumo do Rio e dança passinho no sinal de trânsito? Quem seria esse Jesus?
Pois é essa a reflexão que a Mangueira propôs em seu desfile. Que Jesus seja hoje, como foi no passado, um representante das minorias, dos descriminados, dos colocados de lado. Dos assassinados nas periferias e favelas do país e do mundo. Jesus seria aquele que volta para promover o entendimento entre diferentes. É por aí.
Não por acaso – porque não existem coincidências – eu vi um pedaço de “Indiana Jones e a Última Cruzada” em algum canal pago, justo na tarde de ontem. Era a cena em que Jones encontra o cavaleiro templário, que guarda o Santo Graal numa sala cheia de cálices. Logo eles são abordados pelo empresário e pela historiadora nazistas. O templário os manda escolher o Graal em meio a todos os cálices e os avisa que a escolha errada resultará na morte, enquanto a certa garantirá a vida eterna, desde que fiquem dentro do complexo em que estão. Os nazistas escolhem uma taça cheia de ouro, pedras preciosas e luxo. Antes de beber, ele diz:
– Certamente é o cálice do REI DOS REIS.
E bebe. E vira uma caveira em segundos, explodindo em seguida.
Indiana Jones resolve escolher uma taça porque seu pai está agonizando do lado de fora da câmara. Escolhe a mais pobre e humilde entre as que estão na sala. E bebe. O cavaleiro diz:
– Você escolheu sabiamente.
É isso. Em 1989 esta mensagem já vinha na cultura pop mais acessível. Jesus é pobreza material, gente como a gente, pé no chão, injustiçado, executado pelos mesmos que se apoderariam de sua mitologia mais tarde, no caso, os romanos. A ideia de um Jesus forte materialmente – seja rico, seja um lutador de MMA com “fé” tatuado no peito – é uma construção histórica dos poderosos a quem o próprio Cristo combateu. E que o mataram.
Se alguém aqui deveria ter medo de invocar a fé de Cristo, esses deveriam ser os “messias de armas na mão” que o samba da Mangueira fala tão lindamente e diz não existirem nas favelas.
A Mangueira desfilou com cristos indígenas, mulheres, LGBTQ+, negros, gente de todos os tipos, que são alvo de preconceito numa sociedade que se diz católica e cristã. Gente que age desta forma em nome de Cristo. Que deseja a morte do próximo em nome de Cristo. Gente que brande armas e as aponta para o próximo em nome de Cristo.
A Mangueira fez questão de mostrar que Cristo é uma ideia. E que esta ideia passa por compreensão, amor e se enxergar no próximo. E não há nada que tire da mente das pessoas a imagem do Jesus negro, com cabelo descolorido, preso à cruz com várias balas no peito.
Ao contrário do Cristo Mendigo, que Joãozinho Trinta precisou cobrir em 1989, no desfile da Beija-Flor de Nilópolis, o Cristo crivado de balas ficará na memória do Carnaval para sempre.
E por isso, a Mangueira é campeã, mesmo que não vença formalmente o desfile de 2020.
E o verso “não existe Messias de arma na mão” é para a ecoar por todos os tempos.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.