O orgulho da burrice
*antes que alguém alegue que o texto fala que Caetano Veloso é burro, a imagem que o ilustra é referente ao meme “Como você é burro” que reproduz uma fala do compositor baiano no programa Roda Vida, em 1978.
O que a gente entende por “burrice”? É desconhecimento? Teimosia? Renitência? Este é um termo que usamos com frequência e que, quase sempre, confundimos ou não compreendemos totalmente suas fronteiras. E nem por isso somos “burros”, quer dizer, pelo menos é o que eu acho. Claro, há ironia nesta última frase ela vai de encontro a uma postura disseminada nas redes sociais, o orgulho de ostentar seu ponto de vista, não importa qual seja ele. O individualismo é um braço poderosíssimo do neoliberalismo, não só para o consumo material mas para disseminar a dificuldade em promovermos união entre diferentes. E isso não é fruto do acaso, é muito mais fácil controlar as pessoas quando elas não estão unidas, cooperando, coexistindo. Somos individualistas antes mesmo de sermos indivíduos.
E isso vai de encontro ao orgulho de defender seu ponto de vista, que é, na verdade, uma mutação da falta de capacidade de aceitar ao opinião alheia. Veja, é diferente de tolerância. Aqui, neste caso, falo da possibildade de você mudar de opinião a partir de um argumento contrário. É o tal do “convencimento”, que parece ausente da mente das pessoas, pelo menos quando elas estão “on”. A cultura das redes sociais acelerou a velocidade de tudo e nos colocou nessas centrífugas existenciais, que exigem uma capacidade ímpar de atualização, conectividade e força de expressão. Num mundo em que pessoas absolutamente medíocres, sem talento, desprovidas de noções básicas de civilidade, são alçadas à condição de “influencers”, como lidar com isso? E como lidar com as empresas – virtuais e reais – que abraçaram a lógica mais selvagem, a do “curtir”? Não importa há tempos se alguém está enaltecendo o nazismo ou a tortura, se há curtidas, é potencialmente explicável e tolerável porque tem “valor” pressuposto. Em suma: se tem moscas voando sobre o cocô, ora, o cocô deve ser bom. Então, vamos comê-lo. É por aí.
O endosso das empresas, da imprensa, do bom senso é diluído diariamente a partir dessa lógica. Como disse o cantor e compositor Leoni, quando foi entrevistado para a Célula Pop em fevereiro de 2019: “não importa se é bom, se tem curtida, tá valendo”. E isso serve para tudo. Por exemplo, se o bbb 21 é o assunto mais comentado das redes sociais, ora, ele é, automaticamente bem sucedido e gerador de lucro. E tal pressuposto é endossado pelas pessoas que, tal e qual fumantes passivos, passam a ver os comentários sobre o programa galgarem degraus e mais degraus nas redes. E tal ação acaba contaminando até mesmo as pessoas progressistas, que, sob a alegação de consumir “mero entretenimento” ou “se alienarem” da realidade, consomem o programa e o endossam, participando da corrente gerada por ele.
Claro, você pode dizer que eu, ao criticar a atração global, também estou fazendo parte disso. Sob certo ponto de vista, estou, mas este é o mesmo ponto de vista de quem pensa que as curtidas são a única instância sobre um assunto. Na verdade, minha opinião, por ser contrária, é, obviamente, contra o programa, mas o sistema é tão inteligente e abrangente que transforma minha visão em algo positivo, porque, ora, se você está falando disso, é porque ele te afetou. Veja, eu não assisto bbb desde a primeira edição, a qual vi pedaços esporádicos, movido pela curiosidade e pela então novidade que significava o programa. E, iludido com a referência ao Big Brother de George Orwell, vi achando que teria algo sobre o derretimento das pessoas num ambiente hostil. Qual nada. Com o tempo, o derretimento é nas casas dos espectadores, que, talvez sem perceber, se transformam em plateias de espetáculos de gladiadores romanos se matando numa arena especialmente projetada para potencializar suas “qualidades”. Como eu disse outro dia, o programa é um laboratório em que questões importantes da vida em sociedade são intencionalmente manipuladas pela globo e anunciantes, para distrair audiência, banalizar seu sentido e esvaziar seu significado.
Mas o bbb é só um problema – grave. Veja, por exemplo, as eleições de 2018. O Brasil foi tomado por uma horda de pessoas – no governo e fora dele – que se orgulham de sua truculência e tendência a lidar com a vida de forma ressentida, preconceituosa e intolerante. Para isso, revestiram sua vivência com religiosidade superficial, patriotismo desinformado e sem noção e, confessaram sua tolerância para com a violência reativa. Ou seja, se bandidos me ameaçam, qual a solução? Matá-los. Se torcedores do outro time me incomodam, qual a solução? Dar porrada neles. Se partidários de outras opiniões políticas me irritam, qual a solução? Metralhar a petralhada, em frase dita pelo atual ocupante da presidência.
A ostentação da burrice é muito pior do que a ignorância. Esta última é incontrolável, mas tem solução. A burrice é como vício em drogas, a pessoa precisa admitir que tem e querer curá-la. E, para isso, terá que abrir mão de suas opiniões e receber o que outras pessoas pensam. É um processo delicado e quase impossível em tempos como os nossos.
Mas a gente segue tentando.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.