“O Avesso da Pele” e o preconceito que tem nome

 

 

 

 

Rascunhei uma resenha para a obra dessa semana várias vezes até optar por um texto sem amarras, vindo de todo o impacto com que ela me transpassou.

 

Não há como sairmos ilesos de um livro que supera a forma-página, que não se basta somente à uma leitura. Que de cara nos faz sentir seu núcleo sem dar caminhos fáceis até ele. Eu quis ler “O Avesso da Pele”, o fenomenal trabalho de Jeferson Tenório, escritor carioca radicado em Porto Alegre desde seu pré-lançamento, encantada com a capa que traduz em cores a dureza do seu principal tema. Terminei o último capítulo no domingo com a sensação de ter tirado com as mãos e os olhos tristes e envergonhados todas as camadas que cobrem o desprezível produto de uma sociedade que não se reconhece racista ainda que tenha perdido toda a vergonha do seu retrocesso.

 

Jeferson desnuda a constatação de que o preconceito social não se constrói sozinho.

 

Seu livro é sobre afetos partidos, desencontros, piadas que jamais serão somente piadas, abandonos que nunca acontecem sem deixar vestígios, operações policiais que passam longe de ser apenas casos isolados, existência definidas pela cor da pele.

 

É necessário preservar o avesso. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo do mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos”.

 

Pedro, um estudante de arquitetura de 22 anos, está no apartamento do pai, assassinado em uma abordagem policial.  Lá ele revisita as poucas lembranças do que viveram juntos e a trajetória forjada a ferro e fogo de Henrique, um homem negro tentando existir no Sul.

 

“Porque toda vez que você saía para caminhar, tinha a impressão de estar invadindo um espaço. Bastava dar uma olhada para perceber que você não podia pertencer àquilo, mas acontece que você insistiu. Permaneceu”

 

Ao dar rosto e voz às pessoas que sentem no avesso de suas vidas, de suas infâncias, sua sexualidade, de suas famílias os rompimentos a que o racismo as impõe a história se agiganta de uma tal maneira que é impossível não se colocar no lugar dos personagens.

 

A afetividade nos atropela, torcemos e sofremos com as batalhas de Henrique, professor de Língua Portuguesa em escolas periféricas de Porto Alegre e nos alegramos com suas pequenas vitórias de profissional e sobrevivente que conhece e acredita no poder dos livros.

 

“Agora você planejava levar Kafka, Cervantes, James Baldwin, Virginia Woolf e Toni Morrison para eles. Depois daquela noite, tudo era possível. Aquilo estava te salvando do abismo”

 

Jeferson não se prendeu a um romance explicativo. A tomada de consciência de Henrique sobre sua posição como homem negro não se dá de forma panfletaria, tampouco a de Pedro. O que interessa ao autor é como as camadas do racismo afetam vivências e lembranças, ainda que elas se revelem aos poucos, ou nunca, por motivos que fogem a nossa compreensão.

 

O urgente é que elas jamais sejam subdimensionadas.

 

A importância do que Jeferson escreveu é imensa. É olhar com mais carinho para a solidão das nossas amigas negras, é pensar nos meninos e homens negros que precisam estar sempre bem arrumados para sua própria proteção, ainda que isso signifique renunciar à própria identidade.

 

“Eu sei que os negros são os que mais morrem por armas de fogo. Vemos isso a todo momento na TV, mas a gente nunca acha que isso vai acontecer com a gente. Você assiste àquelas reportagens com os parentes das vítimas, pessoas negras em bairros periféricos, chorando, reclamando da violência, do descaso das autoridades, e a gente fica triste e solta um que merda-quando-isso-vai-acabar e volta a comer seu prato de arroz com feijão. Então de uma hora pra outra, assim, sem mais nem menos, é a sua vez de chorar um morto “

 

É ter empatia com as desestruturas familiares que existem por razões muito mais dolorosas que nosso mero comodismo pode compreender.

 

E principalmente, ler o Avesso da Pele é se imaginar vestindo por inteiro a carne do outro. Só assim a gente aprende que todas as dores causadas pelo racismo não são apenas uma questão de opinião.

 

PS: enquanto terminava esse texto li um post de uma amiga sobre Douglas Peçanha e Silva, um rapaz que tinha paralisia cerebral e surdez por sequela de rubéola morto no que a PM do Rio de Janeiro declarou como “auto de resistência”.

 

Notícias diárias como essa somente fazem com que a leitura de o Avesso da Pele uma necessidade.

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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