O auge oitentista do Roupa Nova

 

 

A gente não escolhe quais lembranças terá na vida, certo? Eu jamais pensaria que, depois de velho, me lembraria da primeira vez que ouvi … “Whisky A Go-Go”, do Roupa Nova. Lembro, inclusive, com detalhes. Eu ouvia então a Globo FM, emissora carioca que compunha o meu “quadrado mágico” do dial daquele início dos anos 1980. Além dela, Cidade, Transamérica e Fluminense se revezavam no velho Transglobe do meu avô, que eu contrabandeara para ouvir ao longo do dia, no recanto privado do meu quarto. O mecanismo era simples: na frente do enorme rádio ficava um gravador National, recheado com uma fita Basf C-60, com a tecla REC apertada, contida apenas pela tecla PAUSE. Quando surgia alguma música de interesse, a gravação era iniciada ao destravar o PAUSE. E tinha início a torcida para que o locutor deixasse a canção chegar ao fim – algo raro – ou que não houvesse a inserção de alguma vinheta – algo ainda mais raro. E foi dentro desta lógica que, num belo dia, “o novo sucesso do Roupa Nova” surgiu no meu quarto, via Globo FM. Eu, então com 14 anos, tinha dois amigos metaleiros no colégio àquela época e eles eram unânimes em apontar Kiko, guitarrista do Roupa Nova, como o melhor em atividade no país, seguido de perto por Wander Taffo, então no Rádio Taxi. Com essas indicações e um pouco de rodagem adquirida via trilhas sonoras de novelas globais, o Roupa andava, digamos, no meu radar de interesse.

 

Foi com “Whisky” que eu compreendi que o Roupa Nova era uma banda de rock. A canção arremessava a banda no mapa do estilo no país, em sua fase pré-Rock In Rio. Antes do festival dos Medinas, não havia uma distinção muito clara sobre o que era rock ou pop rock no país. O Roupa certamente estaria inserido nesta segunda categoria, ao lado de bandas como o citado Rádio Taxi ou mesmo a Blitz, mas talvez perdesse na “atitude”. Àquela época, Paulinho, Serginho, Cleberson, Ricardo, Nando e Kiko eram mais velhos que os novinhos que pululavam em Paralamas e Titãs, por exemplo, além de virem, literalmente, de outro tempo. Egressos de uma cena incipiente, porém forte, de rock carioca dos anos 1970, os sujeitos participaram de formações com o nome de Motokas e Famks, sendo que, com a última, gravaram dois álbuns de pouco impacto. Adentrando os anos 1980, os sujeitos já tinham altíssima rodagem, tanto em shows de diversos tamanhos, como em participações em gravações de um sem-número de artistas brasileiros, de Milton Nascimento a Roberto Carlos. Com o tempo, esta característica se acentuou, levando o Roupa Nova a ser uma espécie de versão brasileira do Wrecking Crew, o time de músicos felpudos dos estúdios de Los Angeles, que participou de quase todos os álbuns clássicos gravados por lá, entre os anos 1960 e 1970.

 

 

A mudança de nome para Roupa Nova veio como sugestão do produtor Mariozinho Rocha, levando em conta a canção homônima, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, que Beto Guedes havia gravado na época. O grupo também redefiniu sua sonoridade, incorporando um pouco do rock hippie tardio nacional a um molho de pop americano AOR vigente nas rádios FM da época, tudo devidamente temperado pela capacidade técnica dos sujeitos. O primeiro álbum, homônimo, veio às lojas no fim de 1980 e daria início uma trajetória de trabalho intenso, enfileirando cinco álbuns em cinco anos. Neste espaço de tempo, o Roupa cravou seu nome junto ao público pois foi escolhido para participar de inúmeras trilhas sonoras de novelas globais. Entre 1981 e 1986, a banda colocou nada menos que sete hits, uma média superior a um hit nacional por ano.

 

 

A obra do Roupa Nova não é uniforme. Há uma nítida mudança de escopo sonoro a partir do sexto trabalho, “Herança”, lançado em 1987. A banda direcionou seu poderio autoral e técnico para uma sonoridade pop baladeira romântica, deixando de lado algumas das canções mais agitadas, caso, por exemplo, de “Whisky A Go-Go”, que está no quarto álbum lançado pelo grupo, em 1984. Uma olhada para as canções que a banda gravou nos primeiros cinco álbuns, mostra, sim, a presença de baladas radiofônicas perfeitas, apontando que o grupo já tinha talento suficiente para investir neste terreno. Clássicos como “Sapato Velho”, “Anjo”, “Tímida” ou “Bem Simples” confirmam isso. Mas, ao lado delas, havia um filão mais pop ensolarado que foi sacrificado em favor do modelo de balada adotado no pós-1987, que lembrava produções do grupo americano Toto, devidamente turbinada com guitarradas que soavam um pouco como os trabalhos do Queen naquele tempo, confirmando o diagnóstico dos meus amigos metaleiros anos antes: Kiko Loureiro era, de fato, um ótimo guitarrista. Neste grupo de composições mais pop e solares estavam “Clarear”, “Show de Rock’n’Roll”, “Canção de Verão”, entre outras.

 

 

A configuração do Roupa dava ensejo a adotar vários modelos. Serginho e Paulinho eram ótimos guitarristas e bateristas, enquanto, além de Kiko, o grupo contava com Cleberson e Ricardo nos teclados e sintetizadores, algo raro em termos de Brasil oitentista, além de um ótimo baixista, no caso, Nando. Esse sexteto era capaz, não só de gravar qualquer coisa num estúdio, como garantir uma polidez sonora inquestionável, constituindo um padrão técnico buscado por todos os artistas nacionais naquele início de década. Por conta disso, o grupo era muito procurado para gravar temas instrumentais, como, por exemplo, o “Tema da Vitória”, que sonorizou as manhãs de domingo dos espectadores de Fórmula 1, sendo tocada sempre que um piloto brasileiro vencia uma prova. Também executavam o tema do programa global “Video Show”, tendo “Don’t Stop Til’ Get Enough”, de Michael Jackson, como base. Não foi diferente com os temas do festival “Rock In Rio” e a abertura do programa de Xuxa, todos gravados pelo Roupa Nova.

 

 

O quinto disco do Roupa Nova, homônimo, lançado em 1985, ano do Rock In Rio, é, a meu ver, o grande momento do grupo em estúdio. Este trabalho tem o repertório mais diversificado, indo de canções dançantes e animadas como “Um Caso Louco”, “Tão Rica” e “Show de Rock’n’Roll” (a meu ver, um dos melhores momentos do Roupa em todos os tempos), passando por duas baladas perfeitas, reconectando o grupo aos ecos iniciais da carreira (“Seguindo no Trem Azul” e “Dona”, esta última, hit nacional por conta de sua inserção na novela “Roque Santeiro”), além de sucessos inegáveis como “Linda Demais” e a cover new bossa de “Corações Psicodélicos”, de Lobão. Antes, portanto de Cazuza visitar o velho estilo em 1987, em “Faz Parte do Meu Show”, os cariocas do Roupa Nova já haviam feito algo semelhante, com um arranjo bastante interessante, misturando passado clássico àquele presente tecladeiro, soando bastante próximo do que faziam bandas inglesas na época, como Matt Bianco. Falando em “tecladeiro”, uma audição a “Sonho”, última canção do álbum, mostra o que o Roupa Nova era capaz de gravar em estúdio. Com ponto de partida em “In The Air Tonight”, de Phil Collins, o arranjo é bastante moderno para a época.

 

 

A crítica especializada da época não foi capaz de entender o Roupa Nova. O grupo era acusado de ser “popular demais”, passando depois ao “popularesco”, ou seja, responsável por canções e discos de “mau gosto”, empapuçados em guitarras açucaradas e excesso de teclados, o mesmo roteiro que era usado para denegrir artistas estrangeiros que investiam neste tipo de som, como o próprio Toto. O Roupa Nova, no entanto, jamais clamou para si um DNA roqueiro ou algo que exigisse deles uma atitude específica. Sempre foram sujeitos técnicos e inspirados, colocando estas características a serviço do que compunham e gravavam. Seus álbuns contém mais hits que qualquer outra banda em atividade na primeira metade dos anos 1980, sendo que este quinteto inicial de discos, lançado nestes primeiros cinco anos da década, oferece um material de qualidade inegável, muito além dos clichês da crítica musical da época.

 

 

O grupo iniciou uma segunda fase a partir de 1987, que duraria até o início da década seguinte, marcada por mais uma tonelada de hits, indo desde “Este Tal de Repi En Row” (gravado com o grupo americano Commodores), “A Viagem” (tema da novela homônima, exibida em 1994) e ao lançamento de um ótimo álbum, “De Volta Ao Começo”, em 1993, quando o grupo enfileirou versões para originais de Milton Nascimento, Paralamas do Sucesso, Gonzaguinha, Sergio Sampaio, entre outros, mostrando versatilidade e bom gosto na escolha do repertório. Com o tempo, o Roupa Nova se tornou mais conhecido por shows pra lá de competentes do que por novos álbuns, ainda que tenha ganho prêmios com seus lançamentos mais recentes. Em 2020, quando o grupo se preparava para comemorar 40 anos de atividade, o vocalista e baterista Paulinho morreu por conta de complicações cardíacas. Em seu lugar entrou o músico substituto Fábio Nestares, que foi efetivado na formação oficial, que segue firme na estrada, mostrando um repertório de respeito e sucesso. Nesta trajetória tão extensa, os cinco primeiros do Roupa Nova são dignos de figurar em qualquer antologia dos melhores momentos do rock nacional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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