Não há ninguém na música brasileira como Luiza Brina
Luiza Brina – Prece
37′, 11 faixas
(Dobra Discos)
Aviso a quem for ouvir “Prece”, novo álbum de Luiza Brina: prepare-se para a emoção incontida. É bem mais que prestar atenção num disco, perceber canções, encontrar ritmos legais e tal. Logo nos primeiros segundos é perceptível a seriedade e a distinção com que este trabalho foi pensado e o quanto ele mostra de talento da cantora e compositora mineira. Mais que isso – após alguns esclarecimento sobre seus processos de feitura, gravação e conceito – “Prece” ganha uma dimensão quase inédita para trabalhos feitos nos últimos, sei lá, vinte e poucos anos. E por falar em tempo, é algo absolutamente desvinculado da maneira linear de pensar o passar dos dias, horas, minutos. Luiza suspende o ouvinte no ar, tira-lhe o chão, o faz (re)encontrar um Brasil ideal, imemorial, impossível a esta altura. É tudo tão bonito que se torna um desafio e tanto traduzir em texto jornalístico. O que é fácil é recomendá-lo para toda e qualquer pessoa interessada em como a nossa música pode assumir proporções belas ao quase ponto de ruptura. Sério, Luiza consegue isso e muito mais ao longo das doze faixas de “Prece”.
Este é um álbum em que vários paradoxos existem em relativa harmonia. O primeiro deles tem a ver com fragilidade e força, que marcam as composições e a própria Luiza como cantora. Tudo em “Prece” sugere uma certeza leveza, ou melhor, uma ciência das coisas, obtida de forma natural, através da atenção, do resgate das coisas simples, dos pequenos atos. Enquanto a voz de Luiza anota registros agudos e doces, os arranjos e as escolhas musicais/sonoras que perpassam as faixas do disco sugerem a tal força a que me referi. A beleza desses arranjos atesta um controle total do espectro sonoro e o ouvinte vai vendo isso aos poucos, tomando um contato maior a partir de “Oração 2”, a segunda faixa, cujos vocais são divididos com a cantora mexicana Silvana Estrada. A sonoridade das cordas, tocadas por mulheres pertencentes a três orquestras sinfônicas mineiras, evoca tanto a fase ecológica de Tom Jobim, de discos como “Matita Perê” e “Urubu”, quanto a obra mais famosa do maestro Moacir Santos, “Coisas”, de 1965. Essa sonoridade conecta automaticamente “Prece” a esses clássicos mas o álbum de Luiza ainda tem mais a apresentar.
Se há cordas lindamente pensadas e arranjadas, há muito de percussão, música rural, violões, sopros e muito de Brasil africano, mineiro, inevitavelmente latino-americano e os resultados que ela alcança neste aspecto vão remontar a discos como “Minas” e “Geraes” (1975/76), de Milton Nascimento ou mesmo a alguns momentos de “Clube da Esquina 2”, de 1978. Tem aquele cheiro de terra imemorial, um sopro de Lumiar que ecoa no horizonte, mas em nada, em nenhum momento, “Prece” tem algum traço de nostalgia e essa é outro paradoxo – o que une o clássico e o moderno, porque, mesmo com tantas referências pesadas e clássicas de música brasileira, o álbum é totalmente centrado em seu tempo, ou melhor, capaz de se colocar acima da visão linear de tempo e existir numa bolha suspensa no ar, destino ideal para muitos de nós.
Todas as faixas de “Prece” são “orações”. Luiza explica que começou a compor este tipo específico de canção quando se viu sofrendo com crises de ansiedade que a impediam de sair de casa. Como meio de encontrar algum tipo de conexão com o divino, ela encontrou esse modelo, que traduzia a angústia ao mesmo tempo em que aliviava. Como não tem nenhuma religião, a missão das criações era ainda mais complexa, mas se comunicava diretamente com algo bem diferente do conceito básico de religião, a religiosidade. Mesmo com essa clareza, demorou bastante até que ela coletasse as composições certas, encontrasse as participações especiais que gostaria de ter e perceber os formatos e detalhes. Luiza coproduziu o álbum com Charles Tixier e a banda presente no estúdio contou com 19 mulheres. Além da mexicana Silvana Estrada, estão presentes a cantora argentina LvRod e os brasileiros Iará Rennó, Maurício Tizumba, Sérgio Pererê e Rainha Belinha. É difícil destacar apenas um único momento de “Prece”, visto que, a meu ver, ele funciona como uma única suíte sonora, mas a sequência formada por “Oração 2”, “Oração 18 (Pra Viver Junto)” e “Oração 3”, é não menos que gloriosa. Ainda são particularmente belas “Oração 17 (risco)” e “Oração 10 (oração ao porto)”.
“Prece” é um disco sem paralelo na música nacional recente. Une pontos que pareciam muito distantes, aproxima experiências, promove o reconhecimento e propõe novos e mais delicados fazeres. É coisa seríssima e Luiza Brina parece flutuar enquanto canta e arranja suas canções. Demais para a nossa brutalidade atual.
Ouça primeiro: O disco todo, na ordem estabelecida.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.