Mais Uma Capa Pra Gente Comprar

Este artigo que estás começando a ler (e, espero, chegues ao final) foi inspirado por um belo texto de Zeca Azevedo nesta bela página sobre Honk, a mais recente (no momento em que escrevo) coletânea dos Rolling Stones, e sobre tanta gente ser devota de colecionismo, completismo, consumismo, fanatismo, compra por “impulsismo” ou semelhante patologia e sentir-se obrigada a adquirir novamente gravações que já tem – seja por uma ou algumas gravações inéditas, nova remasterização, capa diferente ou simplesmente falta de algo melhor em que gastar dinheiro.

 

Até onde sei, esse tipo de neura no rock começou com Elvis Presley, ainda mais artista-certo-na-hora-certa que os Beatles, e cuja ascensão ao megaestrelato coincidiu com o estouro do próprio rock and roll e a popularização de dois nossos velhos amigos: o compacto simples e o LP, formatos substitutos do frágil e chiadeiro 78 RPM. Sim, os primeiros LPs de Elvis estão entre os primeiros LPs de rock, lançados assim que a indústria cultural percebeu que este gênero musical (ou, pelo menos, “esse barulho que enlouquece a molecada”) atraía não só muitas pessoas de salário ou mesada curtas que tivessem 80 centavos de dólar para investir num 78 RPM ou um compacto simples de vinil (ou um dólar para um compacto duplo) mas também as mais abonadas e dispostas a gastar três dólares num LP. Estes preços são aproximados, mas o sucesso foi certo. De modo que o quinto LP de Elvis foi também, até prova em contrário, a primeira coletânea de um artista de rock: Elvis’ Golden Records, lançado em 1958.

 

Esta primeira coletânea do Rei e do rock trouxe meia hora de música, duração mínima geralmente considerada a mais aceitável para um LP, em generosas 14 faixas (os LPs anteriores de Elvis tinham 12). Mas em seguida manifestaram-se mais sintomas da grande moléstia maligna que havia acometido Elvis. Sim, esta moléstia foi seu empresário-parasita, o tristemente famoso Tom Parker. A frase “a cada minuto nasce uma pessoa tola”, erroneamente atribuída ao grande empresário circense P. T. Barnum, bem poderia ter sido criada por Parker, que já desde antes de conhecer Elvis demonstrara isso à exaustão (há bons resumos disto na edição de Rock, A História E A Glória dedicada a Elvis e em meu livro O Jovem Elvis Presley). E após Elvis’ Golden Records a ganância tomou conta: quase todos os álbuns seguintes de Elvis – inclusive as coletâneas For LP Fans Only, A Date With Elvis e 50.000.000 Elvis Fans Can’t Be Wrong – Elvis’ Golden Records, Vol. 2, todas lançadas em 1959 para saciar e atiçar o apetite do público enquanto Elvis servia ao Exército – traziam menos de doze faixas e tempo total de apenas vinte minutos ou um pouco mais; álbuns “de verdade” como Elvis Is Back! tornaram-se exceções na carreira de Elvis até ele recuperar mais controle sobre seus discos no fim dos anos 1960.

 

Mas o mal de Parker já havia se espalhado pelas gravadoras ianques. Pelos anos 1960 adentro elas ainda achavam que o rock and roll era apenas uma moda passageira cujo potencial comercial devia ser aproveitado enquanto possível. Parker descobriu que o público mais devoto de Elvis não se importava em comprar as mesmas gravações mais de uma vez, inclusive reeditando as quatro faixas de compactos duplos do Rei Real de forma toscamente gananciosa, espalhadas naquelas coletâneas dos selos Camden e Pickwick que chegavam a ter apenas nove faixas cada um! (A gravadora MGM também vai gostar de ser lembrada por seus LPs curtos, raramente passando de dez faixas ou chegando aos 30 minutos, da virada dos anos 1960 para 1970…)

 

Sim, os EUA estavam mudando de Terra das Oportunidades para Terra do Desperdício, da proverbial obsolescência planificada, belo exemplo de “teenage wasteland” cantada pelo Who, e o empreendedorismo estadunidense sempre transformou a melhor culinária em fast-food. Muitos LPs de rock eram tão bem cuidados como hambúrgueres ou salsichas, quitute consumido com alegria e prazer mas sem preocupação com o recheio. Valia tudo: poucas faixas, gravações repetidas em mais de um (ou dois!) álbuns, faixas de outros artistas para preencher espaço (aqueles discos do tipo “Famous Fulano Plus”, “…And Others” ou “…And Friends”)…

 

Normalmente o público inglês de música pop, inclusive rock, recebia (e sabia se dar) mais respeito, com LPs de 12 a 16 faixas e raramente incluindo gravações de compactos, ao passo que os álbuns ianques raramente passavam de 11 faixas – a desculpa era o sistema de arrecadação de direitos autorais, sistema/desculpa esse semelhante ao usado no Brasil desde meados dos anos 1990 e que limita os CDs a 14 faixas… – com os compactos servindo para promovê-los.

 

O texto da contracapa do LP Beatles For Sale, lançado em 1964, esclarece que este álbum “não é uma mistura de ‘qualquer coisa serve’ para vender depressa”. Isso no Beatles For Sale original inglês, porque nos EUA era outra história… Basta lembrar que este álbum foi impiedosamente esquartejado para constituir dois álbuns ianques com apenas 11 faixas e menos de meia hora de música em cada um, Beatles 65 e Beatles VI (notem a criatividade dos títulos… O disco Beatles 65 brasileiro é melhor até na capa. E eu sei que Beatles VI incluiu dois covers de Larry Williams nele lançados, mas eles não demoraram a sair em LPs melhores da discografia inglesa do grupo). E “’qualquer coisa serve’ para vender depressa” é a razão da existência de álbuns como Flowers dos Rolling Stones e Magic Bus do Who, que repetem faixas de álbuns recentes, e também de tantos álbuns estadunidenses dos Kinks incluírem “Louie Louie”, idem Donovan e “Catch The Wind” e até os nativos Beach Boys com “409”…

 

Ao fundaram sua própria Rolling Stones Records, em 1971, os Stones sofreram várias coletâneas oportunistas de sua gravadora anterior, a Decca. Ao sair a primeira, Stone Age (um apanhado apressado de sucessos, faixas de compactos e gravações lançadas apenas nos EUA), a banda imediatamente comprou espaço na imprensa para comunicar: “Não tínhamos conhecimento de que este disco iria ser lançado. Ele está, em nossa opinião, abaixo do padrão que tentamos manter, tanto na escolha do repertório quanto na capa.” Pois bem, a Decca ( sua correspondente ianque, a London) continuaram reciclando as gravações dos Stones, de forma deformante, quase nunca bem pensada, em coletâneas como Gimme Shelter, Milestones, Hot Rocks, More Hot Rocks, Rock’n’Rolling Stones, No Stone Unturned, Made In The Shade… Opa! Esta última, de 1975, é da própria gravadora dos Stones, e foi bem resumida por duas resenhas. Uma é do crítico Robert Christgau: “Seis faixas de dois dos grandes álbuns da década e quatro dos dois mais duvidosos. E nem são as quatro melhores.” A outra é do vocalista punk-new-wave Wayne County (depois Janye County após se tornar transexual) como convidado especial de uma revista (não lembro agora se foi a Circus ou a Hit Parader): “Espere que logo estas faixas voltarão numa ordem diferente.” Não deu outra: mais ou menos a cada quatro anos sai uma nova reunião de “Brown Sugar”, “Angie”, “Tumbling Dice” e “It’s Only etc.”…

 

E a partir dos mesmos anos 1970 não demoraram a sair Welcome To My World de Elvis, 20 Greatest Hits dos Beatles e tantas outras coletâneas do proverbial tipo “caça-níqueis”, com apenas uma faixa rara ou inédita que é “alternate take”, “previously unreleased live version”, “single edit”, sem falar nos “remixes” que infestaram as décadas seguintes… (Ah, sim: houve quem reclamasse de Bob Dylan ter incluído faixas inéditas em sua segunda coletânea, More Greatest Hits, de 1971, para forçar seu público mais fiel a comprar o disco – longínquo precursor de Cross Road de Bom Jovi e outras coletâneas com faixas inéditas, novas ou antigas…) Suponho que alguém além de mim esteja ouvindo na cabeça “Paint A Vulgar Picture” dos Smiths: “Reeditem! Recompilem!/Reavaliem as canções/Álbum duplo com uma foto/faixa a mais (e um bótom tosco)”. Aqui no Brasil arremedaram esse costume em recolhas como As Profecias de Raul Seixas e Os Grandes Sucessos de Rita Lee.

 

“Vocè há de convir que as capas são bonitas”, respondeu-me o colega Ricardo Alexandre quando reclamei num grupo do Facebook das mutilações nazistoides estadunidenses da discografia beatle. Nisso eu concordo. E o raulseixista-mor Sylvio Passos resumiu ainda melhor esta prática – e este artigo – ao comentar comigo sobre uma então recente das muitas coletâneas de Raul: “Mais uma capa pra gente comprar…”

Ayrton Mugnaini Jr.

Ayrton Mugnaini Jr., paulistano de 1957, é de tudo: jornalista, compositor, escritor, pesquisador de música popular, autor ou colaborador de mais de 20 livros sobre artistas como Adoniran Barbosa, Raul Seixas, Elis Regina e a banda Queen e assuntos como música sertaneja e rock brasileiro. Co-produz o programa Rádio Matraca, na USP FM. Foi integrante da banda Magazine, de Kid Vinil. Integra a diretoria do Clube Caiubi de Compositores. É compositor do grupo Língua de Trapo, além de integrante d’A Banda de Tato Fischer e maestro da banda do Sarau do Circo, do Centro de Memória do Circo. Autor das primeiras grandes pesquisas sobre música e circo e festivais de música. E faz questão de arrumar tempo para colaborar no Célula Pop.

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