Lula, o estadista

 

Lula não voltou. Lula nunca foi embora. Mesmo preso, inelegível, incomunicável, ininputável, ele deu sempre um jeito de estar presente. Como lembrança, como aceno, como possibilidade, daquelas do tipo “se há vida, há esperança”, bem no figurino dos filmes de superação que a gente está acostumado a ver. E ontem, diante do discurso que ele proferiu no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, seu lar, o Brasil parece que começou a redescobrir o potencial que ele tem para oferecer uma alternativa ao momento que estamos vivendo. As redes sociais ficaram em festa, pelo menos as minhas bolhas, que, no fim das contas, não servem como parâmetro, visto que não há possibilidade de diálogo com fascista ou com passador de pano. E, dito isso, como eu estava com saudade de ouvir um discurso de presidente do Brasil. Sim, porque, a última vez que ouvi um desses foi em 2015.

 

Mas houve tuítes de rodrigo maia e kim kataguiri, deputados federais do dem, que saudaram a possibilidade de Lula dentro de um processo político no país. As emissoras do grupo globo também deram espaço e ponderaram de uma forma, digamos, moderada, sobre a presença do ex-presidente. Como diria minha avó, isso “causou-me espécie”, mas não é novidade. Lula, ainda que tenha sua origem inquestionavelmente popular e alinhada à esquerda, como governante, sempre foi um social-democrata. O problema do Brasil é que, social-democracia por aqui é chamada de comunismo pela nossa elite tão lamentável. E isso significou apenas a presença do estado como garantidor do desenvolvimento econômico durante seus governos e os de Dilma, na materialização de financiamentos a juros baixos, ajuda a pequenos e médios agricultores, programas sociais como Minha Casa Minha Vida, Pronatec e por aí vai, sem esquecer da preocupação com a educação, especialmente a de nível superior, também materializada na incrível fundação de várias universidades federais e programas de custeio em universidade privadas.

 

E Lula, ainda que esteja com sangue nos olhos por conta da farsa jurídica da qual foi vítima e que lhe custou tristezas incríveis, jamais foi humilhado por alguém, por um fato simples: não há alguém no Brasil com cacife para tal. Ninguém tem mais estatura política do que Lula. Ele está a poucos passos de assumir o lugar de Getúlio Vargas na cadeira de político mais importante da história do país. E faz isso com base no carisma, na autenticidade e na igualmente genuína tendência para a conciliação que, caso ele dispute novas eleições, deverá ser sua principal arma. Não significa conciliar com os partidários do bolsonaro, mas com as pessoas que, mesmo conservadoras, se viram escandalizadas com a sucessão de aviltamentos que as regras básicas de sociabilidade sofreram no seu desastrado e desastroso governo. A falta de cuidado pela vida dos mais pobres, a associação com as milícias, as falcatruas dos filhos, a inépcia dele e de seus comandados, nada salva este período bolsonaro de entrar para a nossa história como o pior momento dela. O fato dele ser uma escolha democrática, baseada na tal fraude jurídica, configurando um golpe jurídico-midiático-civil é algo ainda mais vergonhoso para a nossa sociedade.

 

Mas Lula não tem rancores. É sincero ao dizer isso. Ele é como um Rocky Balboa, um Wolverine, alguém que tem ares de indestrutibilidade e isso se manifesta na adversidade absoluta. Quem aguentaria o que ele aguentou nos últimos anos? Injustiça, fraude, ofensas, perda de familiares – esposa, irmão, neto – sob as luzes da mídia que não lhe deu trégua, sem falar da absoluta ingratidão de componentes da classe média brasileira, certamente o segmento social que ele mais ajudou em seus governos. Estudantes de medicina em seu governo se tornaram os médicos que fizeram chacota com o estado de saúde de sua esposa em leito de morte. Filhos de empresários que foram beneficiados no início dos anos 2000 posando de self made men e falando sobre privatizações e competição. Gente sem eira nem beira comprando discurso pronto da mídia porque acha que tudo que tem termos em inglês deve ser bom e funcionar.

 

O Brasil é lamentável sob vários pontos de vista e a expressão máxima disso é o governo que aí está. O absoluto descaso para com a pandemia, que já fez a marca de vítimas fatais ultrapassar as 270 mil, numa base de 2 mil mortes diárias. E só depois do pronunciamento do Lula Livre, o governo mambembe surge de máscaras, praticando distanciamento social e pregando a eficácia da vacina, apenas porque o ex-presidente havia dito, taxativamente, para que as pessoas não obedecessem a bolsonaro e ao seu ministro da Saúde, porque eram imbecis. E não há nada a fazer, exceto subscrever sua fala.

 

Lula deve se cuidar. Ele é a ameaça extrema a este estado de coisas. Sua chance vai aumentar consideravelmente se ele, de fato, for visto pela sociedade brasileira como a única chance de reversão deste quadro. Se setores da indústria vierem apoiando sua presença e, por tabela, sua indicação de candidato, caso ele não concorra. Estamos de olho, mas, não dá pra negar, por mais que sejamos pragmáticos, uma estrelinha voltou a brilhar no nosso firmamento. E ela é vermelha.

 

 

PS: depois do discurso, Lula respondeu a várias perguntas dos jornalistas e, para espanto geral, não xingou nenhum deles, não insinuou que um ou outro fosse gay e nem mandou ninguém procurar a vacina na casa da mãe. Foi solícito e gentil. Como um estadista que sempre foi.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “Lula, o estadista

  • 11 de março de 2021 em 14:36
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    Que texto, meu caro!
    Que espanto vermos novamente um discurso político que se comunica com todos. Eu sou consequência das políticas inclusivas do governo PT, me formei, diz mestrado, graças a tais medidas, por isso me felicidade.
    Fazia tempo que minha esperança tinha se perdido, mas ontem pude avista-la , mesmo que distante.
    Obrigado pelo excelente texto.

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