Kamasi Washington em Porto Alegre

26 de março, 21h, no Bar Opinião

 

Há muitas diferenças entre registros fonográficos e shows musicais. A mais óbvia delas envolve a presença física dos artistas e dos ouvintes em torno da música. Em disco, temos uma fotografia de um momento musical, uma imagem quase sempre burilada, manipulada, que obedece a padrões técnicos de excelência em termos de performance e de qualidade sonora. Em shows, temos a música acontecendo como um fenômeno multidimensional, aberta aos imprevistos, sensível aos fatos e às sensibilidades expostas muitas vezes à flor da pele pelas pessoas presentes. Isso acontece com todos os gêneros musicais, em especial com o jazz, cuja essência é marcada pelo improviso, pela expressão sonora que muitas vezes brota dos recônditos das mentes dos músicos. Presenciar músicos de jazz ou ligados ao gênero em ação é encontrá-los despidos dos artifícios que os estúdios de gravação podem proporcionar, é percebê-los em condições ideais para a fruição das propostas estéticas deles.

 

Kamasi Washington esteve no Brasil agora há pouco apresentando sua fusão musical pós-moderna calcada no jazz, mas receptiva aos estilemas de gêneros formalmente mais acessíveis como a soul music e o funk. “Receptividade” é a palavra adequada para descrever o que foi visto e ouvido no show de Kamasi Washington em Porto Alegre. O público, na maioria composto por homens caucasianos de vinte a trinta anos, exibiu familiaridade com a obra do músico norte-americano: vibrou muito, dançou muito e até cantou trechos dos temas. Os músicos que estavam no palco estampavam a receptividade própria dos artistas formados nas trincheiras do jazz, em que todos precisam acompanhar minuciosamente e de forma não automática as performances de todos para criar os improvisos que são a marca fundamental daquele gênero musical. Apresentações de jazz, por definição, não podem ser mecânicas e repetitivas, sob pena de extermínio da chama que ilumina o núcleo deste tipo de arte.

 

Para quem já tem mais idade e cresceu ouvindo o jazz afrocêntrico e altamente politizado dos anos 1960 e o jazz fusion posterior ao álbum Bitches Brew de Miles Davis, o som de Kamasi Washington não apresenta surpresas formais e temáticas. “Não há nada de novo sob o sol”, diz o Eclesiastes. Isso não quer dizer que a música de Kamasi Washington é mero exercício de estilo, pois a fusão que ele propõe pega os ouvintes pelas entranhas e provoca reações físicas imediatas como é hábito da dance music. Sim, a música de Kamasi Washington é dançante. Ou melhor, a música que Washington apresentou em seu show em Porto Alegre foi quase toda dançante, marcada pelas pesadas batidas proporcionadas não por um, mas por dois bateristas muito habilidosos. Os beats dos temas de Washington pulsam de forma regular, sem apelo à polirritmia ou à arritmia da música experimental. Neste sentido, a arte de Kamasi Washington aproxima-se muitas vezes do som fusion de artistas dos anos 1970 que investiram pesado na combinação de jazz com o funk, o R&B e o pop, entre eles o subvalorizado Grover Washington Jr. (não tem parentesco com Kamasi). Assim como Kamasi Washington, Grover Washington Jr.  tocava sax tenor. A diferença entre a música de ambos é que a de Grover era muito mais suave,  mais próxima do easy listening, e não fazia referência de nenhum tipo a posturas políticas, mas houve momentos no show em que o sax tenor de Kamasi habitou o fraseado rítmico próprio do soul-jazz setentista do qual Grover foi um dos mais populares proponentes.

 

O elemento pop do som de Kamasi Washington impede que ele seja  um “vanguardista” como os indômitos artistas de free jazz dos anos 1960, entre eles Pharoah Sanders e Albert Ayler (outros adeptos do sax tenor). Ao contrário do estilo desobediente e desafiador dos missionários do free jazz, a música de Kamasi Washington adota sem culpa a estrutura tradicional dos temas de jazz: introdução-exposição da melodia principal-espaço de improvisação-retomada da melodia principal-coda. Embora não possamos dizer sob nenhuma condição que a música de Washington é easy listening, ela não oferece grandes desafios aos ouvintes treinados pelos acervos fonográficos menos convencionais do jazz, da música étnica e da música de concerto. A obra de Kamasi Washington não contém a inquietude instrumental e o refinamento filosófico característicos da arte de John Coltrane, o mais influente e habilidoso professante do sax tenor de toda a história (conhecida e registrada) da música; também não possui a ferocidade e o sarcasmo da fase elétrica de Miles Davis. O som de Kamasi Washington é muitas vezes intenso, mas nunca é agressivo. A mensagem de Kamasi Washington está mais próxima do amor “cósmico” próprio da era hippie, ainda que uma de suas composições mais famosas fale em “punhos de fúria” e evoque a imagem poderosa do punho fechado e erguido, protesto físico automaticamente associado aos radicais do movimento negro norte-americano da década de 1960.

 

Com sua música pulsante e sedutora, Kamasi Washington proporciona a um público jovem a vivência do jazz em formato acessível, mas desprovido das concessões formais feitas por muitos artistas do passado na busca obsessiva pela fama e pela fortuna.  A salvaguarda da obra de Kamasi Washington, aquilo que impede que ela caia na superficialidade, é a ressonância espiritual dos temas e das performances, além da evidente capacidade do artista e de sua banda de tramar temas irresistivelmente funky. O público presente ao show em Porto Alegre dançou ao som da música, mas sentiu-se também envolvido pelo caloroso espírito de comunidade oferecido por ela. O apelo da música de Kamasi Washington é universal; ela anda na contramão dos princípios elitistas de “ousadia formal” defendidos o tempo todo por muitos críticos e fãs de jazz. Ainda bem. Para sobreviver, o jazz precisa também sair de sua redoma e alcançar o público. Kamasi Washington tem mostrado que tal façanha pode ser realizada sem sacrifício da integridade estética.

 

No show, Kamasi Washington mostrou-se generoso e cedeu muito espaço aos outros músicos. Não agiu como “estrela”, apresentou-se como integrante de um coletivo. Este aspecto reforçou o espírito de comunhão reinante no show. Entre os músicos, todos eles muito habilidosos, o evidente destaque foi para Patrice Quinn, que além de cantar muito bem (ela tem uma voz cujo timbre assemelha-se ao de Betty Davis, embora seja menos estridente e muito menos agressivo) ofereceu ao público uma performance física mais parecida com os gestos de quem participa intensamente de um ritual religioso do que de quem realiza passos convencionais de dança. Outro destaque foi o tecladista Brandon Coleman, que produziu belos solos e trouxe ao palco teclados antigos que acrescentaram deliciosos efeitos “cósmicos” à música.

 

Ao final do show, o público parecia plenamente satisfeito, pois presenciou uma performance vibrante e comovente que não deixou de lado em nenhum momento a excelência instrumental. Ao contrário de muitos artistas internacionais que visitam o Brasil em fase crepuscular da carreira, Kamasi Washington vive um período de grande prestígio e de extrema criatividade. Ver e ouvir o show de um artista em um de seus melhores momentos é sempre um privilégio.

Zeca Azevedo

Zeca Azevedo é. Por enquanto.

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