Justiça Para The Carpenters

Karen Carpenter tinha na voz a melancolia do pássaro que sabe que está preso para sempre em uma gaiola.

Falar bem da música de Carpenters hoje é fácil, já que o grupo goza de prestígio entre críticos e fãs de música. Esse prestígio, no entanto, é relativamente recente.

Foi só a partir de 1994, quando saiu o álbum tributo If I Were a Carpenter, que reuniu regravações dos Carpenters feitas por artistas cult como Sonic Youth e Grant Lee Buffalo, que os “descolados” perceberam que era ok gostar da dupla de irmãos natural do estado de Connecticut. Antes dessa revalorização, manifestar aos outros o apreço pela música dos irmãos Carpenter era motivo de risos e deboche. Eu sei disso muito bem porque passei duas décadas sendo zoado por amigos e “especialistas em rock” por conta da minha permanente devoção à música do grupo.

Os Carpenters eram desprezados porque eram vistos como a antítese do rock: suaves, comportados e conservadores. A música dos irmãos Richard e Karen era considerada banal e descartável. O fato de Karen usar roupas que pareciam tiradas do armário da vovó não ajudou em nada a causa dos defensores do grupo.

A visitinha que a dupla fez a Richard Nixon na Casa Branca em 1973 também não pegou bem entre roqueiros e rebeldes em geral.

Os argumentos a favor dos Carpenters estavam todos nos discos que lançavam. O que os críticos da época não perceberam é que a música do grupo ia muito além da acessibilidade e da suavidade. Karen Carpenter tinha na voz a melancolia do pássaro que sabe que está preso para sempre em uma gaiola.

Richard, ótimo arranjador e produtor, sabia cercar a voz de contralto quente e bonita da Karen com um tecido instrumental colorido e delicado que nunca resvalava para a caricatura e o exagero. A beleza do arranjo que Richard preparou para ”Close to You” fez o autor da canção, Burt Bacharach, declarar-se fã dos Carpenters.

Em seus momentos mais comoventes, a música dos Carpenters reflete o romantismo mórbido próprio da juventude. A voz de Karen consegue transmitir ao ouvinte a imagem de uma mulher que sonha acordada com o amor, mas que sabe que jamais vai encontrá-lo. Quando Karen interpreta ”Superstar”, canção em que uma jovem imagina uma relação amorosa com um astro da música que só conhece por meio dos discos, a voz dela comunica de forma inequívoca o sentimento de alienação amorosa e de tristeza. ”Yesterday Once More”, de 1973, narra a história de uma mulher que encontra nas canções de rádio o consolo para enfrentar a solidão e vai pelo mesmo caminho.

Para o ouvinte, fica o sentimento de que as mulheres sonhadoras das letras das canções não são personagens, elas são a própria Karen. Essa percepção dispensa qualquer tipo de informação sobre a história trágica de Karen Carpenter, que morreu precocemente aos 32 anos de idade, vítima de anorexia nervosa.

Richard e Karen cresceram à sombra de uma mãe autoritária e pouco afeita a manifestações amorosas. Desde criança, Richard manifestou seu talento como pianista e foi incentivado pela família a ingressar na carreira musical. Tímida, Karen começou a tocar bateria ainda nos anos 1960, na escola. Richard se ligou no talento excepcional da irmã como baterista e cantora e logo montou um grupo com ela. Os dois ralaram até que, em 1969, foram ouvidos por Herb Alpert, legendário músico popular e o dono do selo A&M Records. Alpert os contratou na hora.

No ano seguinte, o compacto de ”Close to You” voou para o topo da parada pop norte-americana e a carreira dos Carpenters entrou em um ritmo alucinante que durou muitos anos.  A sequência insana de shows, entrevistas, aparições em eventos promocionais e sessões de gravação logo roubou dos irmãos a inocência e a paz.

Karen, que sempre se achou feia e era naturalmente inclinada à sensação de deslocamento e solidão, não conseguiu lidar com as críticas ao seu visual publicadas pela imprensa e entrou na ciranda perversa da anorexia, da qual não conseguiu escapar. Richard, sentindo a pressão da gravadora, da mídia e dos fãs e percebendo a decadência física e mental da irmã, tornou-se dependente de soníferos e teve de buscar ajuda profissional para deixar o vício.

A música dos Carpenters sofreu com os problemas que os irmãos enfrentavam e também com a mudança radical do cenário pop de meados dos anos 1970, que deixou para trás a pluralidade da primeira metade da década para dar lugar à polarização entre a disco music e o punk. O romantismo dos Carpenters foi encarado como um anacronismo neste cenário bipolar e os hits escassearam. Ainda assim, o grupo não chegou a conhecer o ostracismo, pois tinha constituído uma sólida base de fãs em todo o mundo.

O grupo The Carpenters durou de 1969 até 1983, ano da morte de Karen. Neste período, os irmãos lançaram dez álbuns de estúdio, dois discos ao vivo e mais de 30 compactos. Isso sem falar nas compilações de sucessos e nos discos póstumos, preparados por Richard com sobras de estúdio. A cantora chegou a gravar um LP solo que foi rejeitado pela A&M Records em 1980. O disco de Karen foi lançado em 1996 em CD.

Destacam-se na discografia dos Carpenters os álbuns Close to You, de 1970, Carpenters, de 1971, A Song For You, de 1972, e Now and Then, de 1973. Horizon, o LP de 1975 dos Carpenters, é outro álbum muito bonito do grupo. Um dos pontos altos do LP está na quarta faixa do lado B, “Love Me For What I Am”, canção que traz novamente à tona o idealismo romântico característico de Karen.

Todos os álbuns originais dos Carpenters têm gravações comoventes a oferecer ao ouvinte. Sim, existem momentos constrangedores também (“Goofus” é uma canção tola que nem a voz sublime da Karen e a precisão dos arranjos do Richard conseguem salvar), mas são raros.

There’s a Kind of Hush, de 1976, é o LP que Richard Carpenter associa com o período ruim de sua vida e do grupo, mas este disco irregular contém a sublime “One More Time”, gravação que justifica plenamente a aquisição do álbum. A performance vocal de Karen em “One More Time” é definitiva e o arranjo de cordas feito por Richard é encantador.

Para quem não conhece a música dos Carpenters ou quer reencontrar a voz emocionante de Karen e a música sensível de Richard, a discografia do grupo está disponível no Spotify. O neófito pode começar a exploração do repertório dos Carpenters pela histórica e enxuta coletânea “The Singles 1969-1973”, que não dá conta de toda a carreira fonográfica do duo, mas cobre o período mais bem-sucedido do ponto de vista estético e comercial. É um bom ponto de partida, mas também é bom investigar os álbuns originais da dupla de irmãos mais talentosa do pop norte-americano dos anos 70.

 

Zeca Azevedo

Zeca Azevedo é. Por enquanto.

2 thoughts on “Justiça Para The Carpenters

  • 24 de agosto de 2019 em 12:30
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    Parabéns pela coluna, além de descrever com precisão o lirismo das interpretações de Karen e a competência e musicalidade de Richard, faz um alerta ao preconceito que existe numa auto declarada “intelectualidade” prepotente que tenta rotular música como algo brega ou cult. Só existem dois tipos de música, a boa e a ruim, e definitivamente os Carpenters faziam música muito boa, com raros momentos constrangedores, mas o artista que não tiver esses momentos em sua carreira que atire a primeira pedra. Me solidarizo com você pois também sofria com as piadas dos amigos rockeiros por ser fã deles, rsrs…

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  • 30 de junho de 2019 em 11:00
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    Somente rapazes alegres e de alma delicada juntamente com as solteironas inveteradas é que gostam dos Carpenters. Fato!

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