Jorge Benjor, 75 ou 78

 

Ontem, dia 22 de março, foi aniversário de Jorge Benjor. Como figura mítica que é, sua idade não é informação de domínio público e nem pode ser 100% comprovada. Há os que dizem que ele completou 75 anos, outros afirmam que foram 78. O que nos resta fazer aqui é homenageá-lo com um texto que faz jus à sua importância como artista único na música brasileira em todos os tempos.

 

 

A música feita no Brasil após os anos 1960 teve dois grandes momentos de inovação. O primeiro foi quando um baiano de Juazeiro, radicado no Rio, resolveu pôr em prática uma forma inédita de tocar violão. A impressão que se tinha é que havia mais instrumentos presentes, além de ser quase impossível entender ou mesmo acompanhar os movimentos que os dedos do sujeito faziam ao longo do instrumento. Pouco tempo depois, João Gilberto, este franzino cidadão do interior baiano, receberia a responsabilidade por “inventar” um novo ritmo brasileiro, que ficou conhecido como Bossa Nova. O outro inovador, inspirado por sua presença no cenário musical daquele início de anos 60, já tentara ser ponta-direita do Flamengo, passara pelo seminário, aprendera a tocar órgão, violão e pandeiro. Seu nome: Jorge Duílio Lima Menezes.

 

Em 1963, já conhecido como Jorge Ben, o jovem cantor, compositor e violonista lançaria seu primeiro compacto, com as músicas Mas Que Nada e Por Causa de Você Menina. Jorge já se apresentava na noite, inclusive no famoso Beco das Garrafas, em Copacabana, o reduto da boemia bossanovista carioca da época, e chamara a atenção da gravadora Polygram. Seu compacto alçou um vôo inesperado, justamente por apontar um novíssimo caminho para a nascente música popular brasileira da época, ainda sem eira nem beira por conta da aparente incapacidade da Bossa Nova em atingir públicos mais populares, que àquela altura estavam a ponto de se transformar nos entusiasmados fãs da Jovem Guarda, que nasceria no ano seguinte, com o estouro da Beatlemania e a chegada de seu novo ídolo nacional: Roberto Carlos. Jorge nasceu no subúrbio carioca de Madureira, mas logo foi morar no Rio Comprido, bairro da Zona Norte da Cidade, próximo à Tijuca, onde viviam, além de Roberto, seu parceiro Erasmo Carlos e Tim Maia, todos admiradores da forma singular de cantar e tocar engendrada por João Gilberto, mas contaminados pelas sonoridades Rock que começaram a chegar no fim dos anos 50, entoadas por gente como Little Richard, Chuck Berry, Elvis Presley e Gene Vincent, cujo sucesso Be Bop A Lena tornou-se “babulina” na interpretação adolescente de Jorge, amigo dessa galera, rendendo-lhe o apelido Babulina.

 

Jorge também gostava de Rock, mas sempre foi um sujeito plural, também se interessando por Samba e a nascente Bossa Nova, que abriu seus ouvidos e o fez criar uma outra forma de tocar violão. Nas apresentações do Beco das Garrafas, essa maneira diferente, percussiva e ampla de tirar som do instrumento, dando a impressão que havia uma escola de samba contida nas seis cordas. Os três primeiros discos de Jorge Ben, entre eles a antológica estreia Samba Esquema Novo (1963), ampliavam essa ideia de uma nova forma de tocar violão acoplada sobretudo ao Samba. Ben não se afinara com o purismo estético da Bossa Nova, mas também não era um sambista tradicional, com uma verve poética que ultrapassava o universo do estilo, desenvolvendo uma suprema e sensacional lenga lenga romântico-suburbana- transcendental, que seria responsável por sua distinção no cenário musical. Mas naquela época, 1966/67, Ben ainda era um compositor secundário, ainda procurando um lugar ao sol. Com a ascensão da Jovem Guarda, Jorge decidiu aproveitar que seu contrato se encerrara e recrutou uma banda iniciante do estilo, The Fevers, para gravar um novo álbum com ele, o clássico e distinto Bidu – Silêncio No Brooklin, em 1967. Ben estava em São Paulo nesta época e as gravações duraram pouco tempo e o disco saiu pela gravadora Copacabana e mostrava o bom humor (carregado de crítica) de Jorge, que decidira fundar a Jovem Samba, em resposta à Jovem Guarda. Além dessa canção, outras como Menina Gata Augusta e Nascimento De Um Príncipe Africano, já mostravam que a obra dele estava em mutação, o que atrapalhava sua inserção nos nichos que se estabeleceram na música nacional àquela época. Ben não era da Jovem Guarda, mas gostava de Rock. Não era sambista tradicional, mas era capaz de tocar como se fosse um deles. A Bossa Nova arrefecera e uma nova vertente chegaria em breve para ocupar o espaço deixado por ela: o Tropicalismo.

 

Não se engane, Jorge não era tropicalista, mas só teria noção disso um pouco mais tarde. Ele queria se enturmar, então, a partir de 1968,  perambulou por atrações televisivas como Divino Maravilhoso e depois foi ao programa de Gil e Caetano. Alguns anos antes, ele também estivera no programa da Jovem Guarda e no Fino da Bossa e ainda não encontrara sua turma. Os tropicalistas se aproximaram dele por conta de sua capacidade de fusão de estilos musicais e da consequente reinterpretação da música tradicional brasileira (no caso, do Samba). Não dá pra negar a influência desse período na obra de Jorge, isso ficaria latente em seu sexto disco, homônimo, em 1969, que iniciou sua fase na gravadora Phillips. Ali estava um salto Warp em termos de arranjos, qualidade das composições, vocais, tudo era mais focado e absolutamente novo. Canções de amor com instrumentais elípticos, como Domingas, feita para a sua futura esposa, ou com um tom inequívoco de alívio e felicidade com o fim do relacionamento (Que Pena) ou impregnadas de brejeirice suburbana (Bebete Vambora, Cadê Tereza) se somavam a verdadeiros poemas cotidianos como Charles Anjo 45 ou a potenciais hinos nacionais informais, como País Tropical e verdadeiras viagens cheias de referências moderninhas (Barbarella). Este disco é tão sensacional e clássico que parece uma coletânea de sucessos do cantor e marca sua associação com o Trio Mocotó, que o acompanharia nos próximos álbuns, Força Bruta (1970) e Negro É Lindo (1971).

 

A partir de 1969, Jorge inauguraria uma sequência de lançamentos que se extenderia até 1976, os quais respondem pelo momento mais iluminado de sua carreira. Força Bruta (1970), Negro É Lindo (1971), Ben (1972), 10 Anos Depois (1973), Tábua de Esmeralda (1974), Solta O Pavão (1975), Gil e Jorge (1975, com Gilberto Gil) e África Brasil (1976), cada um a sua maneira, são obras importantíssimas para a música brasileira. Jorge Ben conseguiu, a partir de sua incapacidade em se alinhar com os movimentos estéticos, forjar um estilo próprio, pessoal e intransferível. Críticos diziam que ele fundara o Samba Rock, algo que não é totalmente preciso, uma vez que há inflexões jazzísticas por toda parte, além de influência da música negra americana, sobretudo o Funk, a partir de 1971, quando o próprio título de seu oitavo disco, Negro É Lindo, já aponta para um esclarecimento maior acerca dos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos. Acima de tudo isso, está a poética “jorgebeniana”, igualmente única. Ben compôs letras e melodias de tudo o que gravou, desenvolvendo uma maneira peculiar de associar religião (ele é católico fervoroso desde sempre), alquimia (que se insinuaria a partir de Tábua de Esmeralda) com futebol (rubro-negro incurável) e a própria narrativa cotidiana, permeada por lembranças da vida suburbana, dos passeios por festas juninas, circos, colégios, campinhos de futebol, tudo se misturando numa indissociável maçaroca sonora que radiografava o inconsciente coletivo do ouvinte, que havia vivenciado, ao menos, algum ítem da receita proposta por Jorge. Canções como O Circo Chegou, Zagueiro, Porque É Proibido Pisar Na Grama, Moça, Dumingaz, Minha Teimosia É Uma Arma Pra Te Conquistar, Meus Filhos, Meu Tesouro e Fio Maravilha, se enquadram no amplo espectro dessa verve letrista de Jorge Ben.

 

Algumas mudanças estéticas ocorreram ao longo deste período fértil na Phillips. Jorge chegaria em 1975 com desejo de montar uma banda que tivesse peso de Rock e suingue de Samba. Surgiu então a Admiral Jorge V, que o acompanhou em dois discos, Solta O Pavão e África Brasil, que encerraram seu ciclo na gravadora. Jorge também sentia necessidade de abraçar uma música mais Pop e, após gravar em Londres um disco de regravações para o mercado internacional, Tropical (1977), ele assinou contrato com a gravadora Som Livre, pertencente às empresas Globo, que tinha grande projeção no mercado da época graças às vendas das trilhas sonoras das novelas que a emissora veiculava. Com carta branca na nova casa, Ben já chegou arregimentando a banda que seria uma de suas marcas registradas na nova fase da carreira, a Banda Do Zé Pretinho. Este também foi o título de seu primeiro álbum para a Som Livre, gravado em 1978. É um dos melhores trabalhos de sua carreira, totalmente equilibrado na intenção de ser Pop e jorgebeniano o bastante para não afastar fãs de longa data e converter toda uma juventude egressa dos nascentes bailes de subúrbio da época, que começava a ouvir Jorge Ben, Tim Maia e Carlos Dafé. Canções como a faixa-título, Amante Amado, Berenice e Denise Rei não deixam nada a dever aos clássicos da carreira do cantor, que deu sequência à carreira gravando Salve Simpatia no ano seguinte e permanecendo nas paradas de sucesso com Ive Brussel (parceria com Caetano Veloso), Waldomiro Pena e a faixa-título.

 

O período na Som Livre ainda rendeu outros dois bons discos, Alô Alô Como Vai (1980) e Bem Vinda Amizade (1981), com sucessos menores, mas sensacionais, como a autobiográfica A Cegonha Me Deixou Em Madureira, a surreal Oé Oé (Faz O Carro De Boi Na Estrada) ou as líricas Santa Clara Clareou, Curumin Chama Cunhatã Que Eu Vou Contar e O Dia Em Que O Sol Declarou Seu Amor Pela Terra, composta como se fosse um samba-enredo estilizado. A partir daí, a carreira de Jorge começa a entrar num lento processo de declínio. Críticos geralmente apontam o início na Som Livre como o início desse processo, mas a análise é bem cruel e imprecisa. Esses quatro primeiros álbuns, registrados entre 1978 e 1981, são de qualidade inegável, mas a partir de Dádiva, gravado em 1984, os arranjos tecladeiros, a produção bastante pasteurizada e o esgotamento criativo das letras comprometem o resultado final. A situação permaneceria inalterada em Sonsual, do ano seguinte e em Ben Brasil, de 1986, apesar do semi-hit Roberto Corta Essa, que chegou a fazer sucesso nas paradas na época.

 

Jorge ficou sem gravar por três anos e ressurgiu em 1989, com novo nome e nova gravadora. Com contrato assinado e sob as determinações da Warner (presidida pelo ex-gerente da Phillips, André Midani), Ben agora era Ben Jor, por conta de supostos problemas com o nome de George Benson, também contratado da gravadora e com quem havia relatos de “confusão de nome”. Jorge sugeriu mudar para Benzebela, sobrenome etíope de sua mãe, mas foi demovido da ideia e acabou por escolher Ben Jor. O disco lançado no mesmo ano serviu para recolocar seu nome na ordem do dia mas não chegou a fazer sucesso, apesar de boas músicas como Homem do Espaço, Homem de Negócios (com participação de Paralamas do Sucesso e Cabelo, parceria com Arnaldo Antunes, que fez sucesso ao ser gravada por Gal Costa no ano seguinte.

 

O sucesso viria de forma inédita na carreira de Jorge Ben a partir de 1991, quando lançou seu disco Ao Vivo No Rio. Após problemas entre Phillips, Som Livre e Warner por conta dos direitos sobre os fonogramas, o disco foi lançado e uma de suas três canções inéditas, WBrasil alcançou uma inexplicável projeção nacional a reboque o impeachment do presidente Collor e fez com que Jorge se tornasse um popstar, algo inédito. Com o sucesso da canção, a ansiedade por um novo disco tornou-se enorme foi saciada em 1993, quando foi lançado 23. Outra canção, bastante semelhante a WBrasil logo saltou para as paradas, Engenho de Dentro, mas o disco pouco ou nada tinha mais a oferecer. Canções como Spiro Gyra e Moça Bonita (esta última com participação de Tim Maia, que também experimentava grande sucesso na época) não chegaram a emplacar nas paradas. A gravação de um outro disco, dessa vez com releituras Eletrônicas para canções antigas, chegou a ser feita no Paisley Park, estúdio de Prince em Minneapolis, e lançada pela Warner como Ben Jor World Dance. Ben gostou do resultado mas achou que a gravadora não divulgou o trabalho como deveria. Deixou a Warner e assinou com a Sony em 1995, quando lançou Homo Sapiens.

 

O novo disco teve uma faixa com relativo sucesso, Gostosa, mas foi muito pouco para dar gás na carreira de Ben. Ele continuava a se apresentar pelo país com um irresistível show, no qual comandava a Banda do Zé Pretinho em um roteiro de mais de vinte músicas, todas cantadas e dançadas pelo público, sempre renovado. Sua verve, no entanto, parecia próxima do esgotamento e isso ficou evidente pela demora de nove anos em gravar um estranho disco de inéditas, que seria Reactivus Amor Est (Turba Philosophorum), lançado, ainda pela Sony, em 2004, praticamente ignorado pelo grande público. A gravação do Acústico MTV, dois anos antes, servira para Ben exercitar sua capacidade de renovação, ainda que o repertório tenha sido focado em canções de sua fase áurea, apenas com Roberto Corta Essa representando a safra oitentista de Ben. Ele ainda lançaria uma compilação de sobras de gravações dos tempos da Som Livre, chamada Recuerdos de Asunción 433, com a adição de uma constrangedora canção inédita, chamada Emo.

 

Jorge está vivo, morando em São Paulo, casado com Domingas há muito mais tempo do que seria possível imaginar. É um jovem de 69 anos incompletos (nasceu em 22 de março de 1945) e, numa suposição bastante pessoal, não deve lançar mais disco inédito. Talvez ele tenha ciência de que já contribuiu bastante na construção de uma música brasileira plural e próxima da perfeição, talvez ele simplesmente não tenha mais disposição para compor ou sabe-se lá o motivo. Talvez – e aqui vai a torcida, igualmente pessoal – ele só esteja esperando o momento certo para ressurgir com mais um capítulo de sua conversa macia sobre tudo aquilo que nos parece familiar sem que sejamos capazes de perceber. A certeza que fica ao ouvirmos seus discos é que, houve Tropicalismo, houve Bossa Nova, houve Jovem Guarda e, sim, houve (e há) Jorge Ben. Em pé de igualdade.

 

Discografia Selecionada:

1963 – Samba Esquema Novo

 

1967 – O Bidú: Silêncio no Brooklin

 

1969 – Jorge Ben

1970 – Força Bruta

1971 – Negro É Lindo

1972 – Ben

1974 – A Tábua de Esmeralda

1975 – Gil & Jorge: Ogum, Xangô

1975 – Solta o Pavão

1976 – África Brasil

1978 – A Banda do Zé Pretinho

1979 – Salve Simpatia

1981 – Bem-vinda Amizade

 

Texto originalmente publicado no Monkeybuzz em 21 de fevereiro de 2014.

Link para o original – aqui

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “Jorge Benjor, 75 ou 78

  • 21 de setembro de 2021 em 19:23
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    Jorge inexplicável, simplesmente um gênio da música…vida longa pra ele

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