Joan Didion – escrever para não esquecer

 

 

 

Assistimos filmes pelos mais diversos motivos, críticas positivas, sugestões, um nome conhecido no elenco ou na direção. Na era do streaming às vezes uma sinopse rápida é o suficiente, ainda que de um documentário sobre alguém de quem você nunca ouviu falar antes. Foi percorrendo esse caminho que cheguei a “The center will not hold”, da Netflix, sobre a escritora norte- americana Joan Didion.

 

Produzido por Griffin Dunne, também ator e seu sobrinho, em 2017, o filme não se aprofunda sobre o trabalho da Joan, uma das maiores mentes da literatura e jornalismo americano, que soube transitar como poucas e poucos entre ensaios, romances e roteiros para o cinema, mas cumpre o que Griffin se propôs a fazer: uma carta de amor respeitosa a quem deu tanto de si pela cultura e compreensão da vida de gerações inteiras e das fases históricas que transformaram o mundo.

 

Joan, aos 82 anos na época, divide com ele, que a acompanha em cena, memórias interrompidas, processos de criação e histórias familiares. Ela não fala muito, mas transmite toda a sua experiência de quem observou com sabedoria e escreveu ensaios memoráveis sobre a contracultura, política, arte e movimentos sociais, alguns deles reunidos pela primeira vez no seu livro de 1968, “Rastejando até Belém”, e no clássico “The White Álbum, em que, entre outros relatos sobre o fim dos anos 60, está seu contato com Linda Kasabian, uma das garotas do Charles Manson que participaram do massacre na casa do cineasta Roman Polanski, no qual a atriz Sharon Tate, sua esposa, foi assassinada:

 

“Eu estava sentada perto da piscina da minha cunhada em Beverly Hills quando ela recebeu um telefonema de um amigo que tinha ouvido sobre os assassinatos na casa da Sharon Tate e do Polanksi em Cielo Drive

 

Casada com o também escritor John Gregory Dunne, Joan viu outra ruptura se forçar quando em 2003 ele morreu repentinamente. Da desordem veio o seu retorno, na forma do livro “O ano do pensamento mágico”, uma obra que pode ser definida por uma só palavra: coragem

 

“A dor ocasionada pela perda de um ente querido é um estado que nenhum de nós conhece antes de termos passado por isso. Temos a expectativa (e sabemos) que alguém próximo de nós pode morrer, mas não conseguimos enxergar além dos poucos dias ou semanas imediatamente subseqüentes a uma tal morte imaginada.”

“A vida se transforma rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”

 

Joan diz que escreveu “O ano do pensamento…” porque ninguém nunca lhe disse como agir diante da perda de uma pessoa amada. Como se esse expurgo não tivesse sido suficiente em 2005, no ano do lançamento do livro, sua filha, Quintana Roo,  faleceu aos 39 anos. E Joan restou, com seu corpo pequeno, magro, e os braços que se mexem como se quisessem tocar o que se foi.

“Só sou eu mesma quando estou em frente à uma máquina de escrever”

 

 

E para continuar sendo ela mesma, a sobrevivente entre seus amores, escreveu “Noites Azuis”, o livro em que o luto é pela filha, adotada por ela e John ainda bebê e a culpa de Joan por não a ter protegido.

“Eu sei por que tentamos manter os mortos vivos: fazemos isso para mantê-los conosco. Também sei que, se quisermos viver, chega um ponto em que devemos abandonar os mortos, deixá-los ir mantê-los mortos.”

 

Esse é o truque de Joan para lidar com a falta, ela escreve. Escreve para se lembrar de quem é, escreve para que os dias em Malibu, onde sua família morou por anos e as Noites Azuis não deixem de ser habitadas pelos que se foram.

 

Em nenhum momento do documentário ela chora, o sentir é na alma, na profundidade das poucas palavras e na imensidão do olhar. Ainda que o trabalho do seu sobrinho tenha a forma final de uma homenagem familiar a necessidade de ler Joan pulsa a cada passagem de tempo, páginas de álbum de fotos viradas e as entrevistas de pessoas próximas ou que cruzaram sua existência icônica, como Harrison Ford, que foi carpinteiro da casa que ela e John mantinham em Malibu.

 

 

Em 2013, quando presidente Barack Obama concedeu a ela a medalha Nacional Americana das Artes e fez o seguinte e verdadeiro pronunciamento:

“Com muita justiça ganhou a distinção como uma das escritoras americanas mais celebres da sua geração. Por sua maestria e estilo de escrita explorando a cultura ao nosso redor e expondo as profundezas do sofrimento a Srta Didion produziu obras de honestidade surpreendente e intelecto feroz. Transformou histórias pessoais em universais e iluminou aparentemente períodos tão fundamentais para nossas vidas “

 

Assim Joan nos atravessa, gigante e humana, genial e modesta, quieta e corajosa.

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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