Humberto Gessinger segue sua poética em novo álbum
Humberto Gessinger – Quatro Cantos de um Mundo Redondo
32′, 10 faixas
(Deck)
De todos os ícones do rock nacional oitentista, Humberto Gessinger é o mais discreto. Lembro da chegada de sua banda, Engenheiros do Hawai, nas paradas daquela década, envergando uma bandeira outsider, de gente que não fora convidada para a festa que incluia apenas artistas do eixo Rio-São Paulo. De fato, os Engenheiros se tornaram uma força criativa daquela segunda metade de anos 1980, adentrando a década seguinte capitalizados, não só pela crise criativa que se abateu sobre Paralamas e Titãs, bem como sobre os percalços emocionais que levaram Renato Russo a mudar sua escrita na Legião Urbana. O fato é que Gessinger, com a ajuda de Augusto Licks e Carlos Maltz, foi o nome principal do rock nacional a bordo do álbum “O Papa É Pop”, best-seller de sua banda e o mais falado daquele início de anos 1990. No entanto, um maduro Gessinger diz em entrevistas atuais que este foi o momento de sua carreira em que mais esteve infeliz, justo por precisar se inserir numa engrenagem que criticava. O fato é que, mais de três décadas depois disso, com sua banda passando por várias fases e formações, implodida definitivamente em 2008, Humberto está aí, gravando, produzindo e excursionando pelo país. “Quatro Cantos de Um Mundo Redondo” é seu último testemunho criativo e artístico sobre o que está à nossa volta.
A inteligentzia crítica musical brasileira despreza o trabalho de Humberto, ou, pelo menos, costumava desprezar. Jornalistas atacavam suas letras, melodias, conceitos, talvez sem perceber que seu maior mérito como artista foi aliar letras espertas e cheias de frases trocadilhescas com uma capacidade rara de torná-las pop e palatáveis dentro do idioma do pop rock nacional. Também deixavam em segundo plano o imenso número de admiradores desse método de compor e gravar, algo que Gessinger praticamente não mudou. Isso nos faz crer que seu verdadeiro – e sincero – canal de expressão é a mistura dessas melodias e palavras. Com o tempo ele foi depurando as influências folk, algo que também estava presente na gênese do Engenheiros, e foi deixando de lado algumas extravagâncias roqueiras, herdadas do culto a bandas progressivas nos anos 1970. Humberto quase nada se modificou – como diria o Rei – mas as poucas mudanças foram decisivas para torná-lo um artista mais objetivo. Suas letras refletem outros tipos de amores – de pai, de amigo – e acusam a passagem do tempo, valorizando especialmente aquilo que consegue atravessar os anos. Tem seu charme e sua demanda.
Neste “Quatro Cantos” é possível ver que a musicalidade de Humberto congrega mais folk do que rock, ainda que haja espaço também para os regionalismos gaúchos que se mantém como um elemento de distinção de sua obra desde, pelo menos, o segundo álbum dos Engenheiros, “A Revolta dos Dândis”, de 1987 e aprofundado nos trabalhos seguintes. Gravado em Porto Alegre e Estocolmo, o disco traz uma verve bem prolífica. Humberto alterna participação dos músicos que o acompanham ao vivo – Rafa Bisogno (bateria) e Felipe Rotta (guitarra) – e gravações mais solitárias. Em trio, com Humberto no baixo e vocais, temos “No Delta dos Rios”, “Espanto” e “Vaga Semelhança”. O parceiro de Pouca Vogal, Duca Leindecker, participa de “AEIOU”, de autoria do saudoso Bebeto Alves. Já com Fernando Petry no baixo, Diego Dias nos teclados e Luigi Vieira na bateria, temos um quarteto para gravar “Toxina” e “Um Brinde”. Outras canções têm um arranjo mais acústico, caso de “A Noite Inteira”, “Começa Tudo Outra Vez” (parceria com a cantora mineira Roberta Campos) e “Mais Que Sombras”, mantendo o apreço de Gessinger pelas sonoridades desplugadas, algo que se insinuou na segunda metade dos anos 1990 e veio forte até hoje.
Três composições se destacam neste universo. “Fevereiro 13”, gravada em Estocolmo, com todos os instrumentos a cargo de Humberto, é dedicada à filha Clara, que mora na capital sueca e também participa da canção. A letra é bela e emocional, com versos diretos e afetuosos (“te desejo tudo de bom e necessário”), que falam de um amor de pai e filha já maduro e consolidado, seja pelo tempo, seja pelas experiências vividas. “Vaga Semelhança”, com arranjo elétrico e uns efeitinhos interessantes de teclado, reflete sobre visões, novamente modificadas pela passagem do tempo e as perspectivas que se transformam. Lembra bastante uma canção clássica dos Engenheiros, talvez a faixa que mais tenha esta similaridade em todo o álbum. E “Começa Tudo Outra Vez”, com violões e baixo fretless também é reflexão madura de amor, de vivência e de como tudo isso pode ser renovado pelo ritmo elementar dos amanheceres e crepúsculos. Bonito.
Humberto oferece exatamente o que seu público deseja. Poesia direta e reta, que se transforma em ensinamentos sobre o mundo, as pessoas e as coisas, tudo em sua finitude. É um artista que parece totalmente realizado no que faz e na conexão com quem o ouve e o leva em conta. Está de bom tamanho para um artista pop rock no Brasil que sobrou em 2023.
Ouça primeiro: “Fevereiro 13”, “Vaga Semelhança”, “Começa Tudo Outra Vez”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.