“Grace” 25 – A dor e o tempo

 

 

 

Que mês este agosto de 1994! No dia 22, há 25 anos, o Portishead lançava “Dummy”. No dia seguinte, Jeff Buckley surgia para o mundo a bordo de “Grace”. Os discos trazem um fato importante que os une: são estreias de artistas que não tiveram medo de ousar. Se o trio britânico apresentava ao público uma nova sonoridade eletrônica, Jeff promovia um retorno às raízes folk de uma forma igualmente nova. “Grace” traz dez faixas em que o cantor e compositor americano, filho do trovador Tim Buckey, mistura o lirismo das composições voz/violão a uma série de arranjos em que guitarras, baixo e bateria – e cordas em alguns momentos – se juntam e formam uma moldura sonora completamente distinta. É – como definiu a crítica na época – um disco do Led Zeppelin tocado por algum visionário folk. Faz sentido, especialmente por um dos maiores dons de Jeff: sua voz.

 

 

É bom lembrar que este registro vocal – que tem muito em débito com Bono Vox ou Robert Plant, cantor do Led Zeppelin, mas de um jeito introspectivo e sentimental – acabou por influenciar toda uma geração de vocalistas. Se Eddie Vedder, cantor do Pearl Jam, revolucionou com seu tom grave e sofrido, Jeff responde por gente como Thom Yorke e todos os discípulos do Radiohead que vieram na esteira. Estamos falando de bandas como Travis, Muse e Coldplay, apenas para ficarmos nas mais conhecidas/importantes. Jeff, vocês sabem, morreria em 1997, aos 30 anos. Ele tinha, portanto, 27 anos quando lançou “Grace” e este permanece como seu único álbum finalizado em vida. O segundo, “Sketches For My Sweetheart The Drunk” surgiu como disco póstumo, cheio de faixas nas quais o cantor estava trabalhando. “Grace” é, portanto, a sua fotografia 3×4.

 

 

Jeff era um cara do palco. Entenda por “palco” um lugar em que ele pudesse se instalar, tocar violão e cantar. Era um cara de espaços pequenos e a infinidade de registros ao vivo que ele deixou comprova isso. Quando “Grace” surgiu, ele já era um experiente cantor, com um punhado de composições próprias e um notável bom senso para covers. No disco está a sua mais famosa gravação, “Hallelujah”, original de Leonard Cohen sobre a ironia das religiões que marcham junto da violência e da morte. Jeff canta com sentimento e tristeza impressionantes mas a burrice midiática transformou sua gravação em uma espécie de louvor, algo que beira o constrangimento. O sujeito, no entanto, não tem qualquer culpa por isso. Além dela, há vários registros em que ele aparece interpretando canções como “I Know It’s Over”, dos Smiths ou “Kick Out The Jams”, do MC5.

 

 

Mesmo assim, com este virtuosismo de intérprete, tenho preferência pelas composições próprias de Jeff. “Grace” tem sete delas, cada uma melhor do que a outra. “Last Goodbye”, por exemplo, tem uma das melhores performances vocais da década de 1990 e um arranjo de cordas que dá a impressão de que estamos voando sobre um campo verde. Na letra, Jeff sentencia: “este é nosso último adeus, odeio que o nosso amor morra, mas é isso, acabou”. A simplicidade é cortante, a voz é dilacerante, guitarras e todos os instrumentos parecem chorar. Na faixa -título, o andamento do arranjo evoca algo que Van Morrison poderia ter gravado em “Astral Weeks”, é híbrido de jazz e folk, mas é algo novo. Em “Lover, You’ve Shouldn’t Come Over”, ele parece cantar em modulações além das capacidades humanas. A voz chora, enquanto os músicos parecem fazer de tudo para extrair sons equivalentes de seus instrumentos. A sensação é de que um maremoto subitamente surgiu e, rapidamente, se foi, trazendo o deserto. Coisa difícil de explicar, sabem?

 

 

“Grace” não vendeu muito mas conquistou a crítica e outros artistas. A espera por um novo trabalho de Jeff era tanta que sua morte foi uma das maiores tragédias silenciosas da década de 1990. O sujeito morrera afogado num afluente do Rio Mississippi, livre de drogas, álcool ou qualquer indício de suicídio. Relatos dizem que ele cantava “Whole Lotta Love”, do Led Zeppelin, enquanto nadava. Depois, o silêncio.

 

 

Ainda hoje Jeff Buckley é reverenciado por sua obra. Fico pensando em como ele poderia ser um gigante do nosso tempo se ainda estivesse por aqui. Com 50 e poucos anos, cascudo, dono de uma obra deliciosamente estranha e ímpar. “Grace” tem uma versão dupla, lançada em 2004, na qual há um disco inteiro de rascunhos de estúdio e gravações ao vivo. Uma olhada no seu serviço preferido de streaming irá abrir um mundo novo de gravações ao vivo em diversos lugares, de palcos grandes, como o Olimpia – de Paris – ao preferido de Jeff, o bar Sin-é, em Nova York. Num ou noutro, a excelência misteriosa dele é irresistível e quase palpável.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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