Gilberto Gil é eterno e seguirá assim

 

 

Hoje é dia de 80 anos de Gilberto Gil. Tento lembrar aqui quando foi que me apaixonei irreversivelmente por sua arte e me confundo com o passar do tempo. Sim, porque, a primeira lembrança é ouvir “Refazenda”, a canção, em algum fragmento na TV, sem saber onde ou quando. Eu tinha entre 4 e 5 anos, fica difícil estabelecer a precisão nas informações, mas asseguro-lhes que a letra lúdica, mágica, inexplicável e genial da canção já era conhecida minha quando me deparei com “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, que surgiu pouco tempo depois, sonorizando a abertura da novelinha infantil que a TV Globo mostrava diariamente. Entre me encantar com a Narizinho, ter medo do Minotauro e achar que a Tia Nastácia parecia minha segunda mãe, Maria, eu me apaixonei pela canção de Gil. E, uns dois anos depois, quando fiz dez anos de idade, lembro muito bem de ganhar um disco de presente: “Realce”. Foi um caminho sem volta.

 

Lembro de ouvir este álbum e “Frevo Mulher”, de Amelinha, com muita frequência em casa. E lembro deste meu aniversário de dez anos, que teve trilha sonora fornecida por estes dois LPs, mais uma série de coletâneas bacanas de disco music, que pertenciam à minha mãe, mas que já estavam em processo de apropriação por minha parte. Além deles, claro, o “The Man”, de Barry White e o compacto de “Goodnight Tonight”, dos Wings, aquisições primevas, que pavimentaram meu gosto e caráter. Ora, Gil está lá desde o início. Não consigo lembrar de momento da minha vida em que Gilberto não esteja presente. Pode parecer exagero, mas, para uma pessoa que ouve música o tempo todo, chegando a escrever sobre ela para que outras leiam, asseguro-lhes que é impossível entender o mundo sem ser por conta de alguns artistas musicais. Eles passam a ser nossos companheiros, nossas bússolas, nossos captadores da realidade. Gil sempre foi isso para mim, tanto que desfrutei de sua prodigiosa década de 1980, ouvindo álbuns como “Um Banda Um”, “Extra”, “Raça Humana”, “Dia Dorim”, “Em Concerto”, “Eterno Deus Mu” em fileira, sempre gostando, sempre entendendo, sempre tendo a certeza de que meu amigo Gil estava ali, comigo. E tem sido assim desde então.

 

Com o tempo passei a ter certeza de que Gil era uma espécie de pai para mim. Talvez tal licença poética venha do fato de eu não ter tido uma figura paterna na vida, ou, sei lá, por manter uma admiração intensa e constante por ele. Seus trabalhos são traduções de seu tempo, pequenos livros e tratados sonoros em que ele expõe sua permanente busca pelo saber e pelo conhecimento, concluindo que somos mortais, mas somos espirituais e que nossa existência é fruto de uma série de eventos que nos escapam. Só que Gil consegue traduzir esses conhecimentos esotéricos e científicos em versos lindos como “mistério sempre há de pintar por aí”, uma frase que pode resumir a existência da maioria das pessoas curiosas que transitam nas ruas do planeta. Gil, portanto, me ensinou muita coisa.

 

Nunca se falou tanto de Gilberto Gil como hoje. Que bom. Acadêmico, ministro, pai, avô, bisavô, compositor, patriarca, intelectual, o que mais? Ele pode e deve ser o que quiser.  Tive sorte de vê-lo no palco algumas vezes. Com banda, sem banda, com Stevie Wonder, interpretando o repertório de João Gilberto, com sua família no Mita Festival…Sempre tive a sensação de entrar num outro plano quando aquele misto de homem e orixá surge com sua guitarra ou violão, comandando músicos e público. A cada dia que passa, Gil se torna mais impossível de definir, de substantivar. Ele é cada vez mais único, mais importante, mais necessário, especialmente em tempos assombrosos como os atuais. Repito – ele pode ser o que quiser.

 

Sei bem que o tempo o levará de nós algum dia à frente. Porém, Gil, esperto, já nos deixou tantas pegadas e pistas, que será impossível perdê-lo de vista. E, enorme como o firmamento, ele seguirá com os que o quiserem por perto. Não há lógica, porque, você sabe, “mistério sempre há de pintar por aí”.

 

Um beijo, e obrigado, Gil.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *