“Fuzzy” – meu disco preferido dos anos 1990

 

 

 

À medida que o tempo vai passando, vão-se acumulando os discos ouvidos. Portanto, por questões matemáticas e metafísicas, fica cada vez mais complicado definir quais são nossos álbuns e canções mais queridos. Eu tenho encontrado cada vez mais dificuldade para cravar qual minha música preferida de todos os tempos mas um consenso entre os lados do meu cérebro e ventrículos/aurículos do meu coração apontaram para “Baby I Need Your Loving”, gravada originalmente pelos Four Tops lá na Motown de 1964. Em termos de discos, tenho me aventurado há algum tempo tentando estabelecer predileções. Nos anos 1980 eu afirmo que a taça vai para “Steve McQueen”, do Prefab Sprout. E, em termos de anos 1990, quero tornar pública a vitória de “Fuzzy”, estreia impressionante do trio Grant Lee Buffalo, de 1993. Dentre as onze canções que integram o álbum, não há um segundo desperdiçado. É tudo praticamente perfeito. E aproveito desde já para eleger Grant Lee Phillips como detentor da mais bela voz daquela década. Mais que Eddie Vedder, mais que Jeff Buckley, porém, não tão influente quanto estes dois. Se duvidar ou achar exagero, apenas ouça qualquer uma das canções do álbum.

 

Grant Lee Phillips era uma guitarrista que amava R.E.M., John Lennon e David Bowie em escalas quase iguais. Dono desta voz celestial e de uma criatividade exuberante, Grant começou cedo a querer ter uma banda de rock. Montaram uma banda chamada Shiva Burlesque, que não foi muito longe. Dela vieram os ótimos Paul Kimble e Joey Peters, contrapontos perfeitos para as ambições artísticas de Grant. Sob o clássico formato de baixo, bateria e guitarra, mas contando com esquisitices como o domínio de Kimble sobre o piano e a chamada pianola (aqueles pianos dos saloons americanos), o já batizado Grant Lee Buffalo despontou para a mídia em 1993. Após um dos primeiros shows, o selo Slash Records, distribuído pela Warner, assinou com a banda e levou-a para o estúdio a fim de gravar sua estreia.

 

“Fuzzy” nasceu como uma espécie de declaração de intenções do grupo diante do objetivo implícito por parte de Grant de recriar climas e sons remetentes a uma América mitológica, cheia de peregrinos do Mayflower, lendas do sul do país, cowboys empoeirados, o assassino de Abraham Lincoln, John Booth e até gente como Al Capone. Para isso, o instrumental oscila numa espécie de fio da navalha em que interagem punk, folk, country, psicodelia e o tão chamado “novo”, contido em algum lugar entre os timbres da voz de Phillips e o clima criado. Mais ainda: há um certo teor gótico e sombrio pairando sobre as canções, dando-lhes alguma esquisitice própria. Tem vocalizaç~çoes, solos impressionistas, guitarras que mesclam doçura, acidez e melodia, além de timbres meio fantasmagóricos que surgem aqui e ali. Muitas vezes, “Fuzzy” soa como um lamento por um mundo desconhecido, algo que poderia existir numa encruzilhada improvável entre as obras de Neil Gaiman e Edgar Allan Poe.

 

O álbum começa arrasador com “The Shining Hour”, levada com piano anos 30 e permeada por letras surrealíssimas, em que versos etílicos como “it kills me to think that I´m no longer living, just looking for excuses to drink” (“me mata pensar que não estou mais vivendo, apenas procurando desculpas para beber”) convivem com loucuras como “I propose a toast to the memory of the horse who carried King Tut and his gold… into the sun” (eu proponho um brinde à memória do cavalo que levou todo o ouro do Rei Tut ao sol”). Uma das mais perfeitas, doloridas e românticas canções desconhecidas do pop vem em seguida, “Jupiter and Teardrops”, narrando o amor impossível entre um artista mambembe e uma ex-presidiária. Em certo momento Grant faz um trocadilho perfeito com o nome Teardrop e uma das mais lindas canções dos anos 50, “Lonely Teardrops”, do Elvis negro Jackie Wilson, que toca no rádio enquanto a ação se desenrola. As alegrias prosseguem em “Stars’n’Stripes” na qual o cenário desolado de um ferro velho serve de metáfora para uma grande cidade decadente e principalmente em “Dixie Drugstore”, que fala do amor entre um casal de fantasmas em Nova Orleans em meio a vocais que murmuram “jambalaya” (uma saudação típica do Sul), cantados pelo próprio Grant com falsete de fazer inveja aos grandes mestres da soul music.

 

“Fuzzy” levou o Grant Lee Buffalo ao sucesso, mais na Europa que nos Estados Unidos, mas a banda nunca repetiria o arraso de sua estreia em seus três discos seguintes, “Mighty Joe Moon” (1994), “Copperopolis” (1996) e “Jubilee” (1998). Neste mesmo ano Grant deixou-a após uma turnê na Austrália em decorrência de problemas contratuais com a Warner e embarcou em uma belíssima carreira solo, que já conta com o maravilhoso “Ladie’s Love Oracle”, lançado em 2000 pelo minúsculo selo Magnetic Fields, e mais oito álbuns. Neste ano ele já soltou um EP, “Mouring Dove”, em que a voz continua a mesma, a sensibilidade idem. Em fevereiro de 2002 foi lançada, “Storm Hymnal – Germs From The Vault of” – Grant Lee Buffalo”, coletânea dupla que tem seu maior atrativo no CD 2, contando com vários b-sides e raridades, incluindo versões acústicas de “The Shining Hour”, “Jupiter and Teardrop” e da faixa título. “Fuzzy” foi inexplicavelmente lançado no Brasil em 2000 pela Warner (com sete anos de atraso), e hoje está fora de catalogo por aqui, mas com sorte ainda pode ser encontrado em sebos.

 

Numa década que teve medalhões como “Nevermind”, “Bloodsugarsexmagic”, “Automatic For The People”, entre outros discos mais emblemáticos, “Fuzzy” é soberano. Continua enigmático, mágico, único. É uma obra-prima delicadamente oculta por um véu que deixa ver algumas transparências, mas nunca o seu todo. Pra isso, é preciso ouvir e amar.

 

Em tempo: este texto é uma atualização de ‘”Fuzzy”, Grant Lee Buffalo’, publicado no Scream & Yell em 29/10/03 (o tempo voa, gente).

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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