Entrevistas e a política da memória

 

 

Ontem o amigo Manoel Magalhães publicou este texto no site Medium. Ele o divulgou em seu perfil no Facebook e assinalou a Célula Pop, devido à menção que faz sobre a importância da preservação da memória de textos e entrevistas publicados em  sites como este e vários outros co-irmãos e companheiros de batalha. Lembrei da entrevista que Manoel concedeu a mim por conta da produção e direção do curta “Nada Pode Parar Os Autoramas”, na qual ele disse a mesmíssima coisa: a importância sobre preservar estes escritos e como eles correm riscos, uma vez que estes sites não têm qualquer tipo de incentivo para permanecer no ar e, por conta disso, via de regra, não duram muito tempo. Deixo o texto abaixo para que todos leiam e também informo o link do post original (aqui).

 

Na última quarta-feira entrevistei a banda Fellini por videochamada. São 37 anos de história como grupo, cinco discos oficiais de inéditas, três álbuns de versões alternativas, b-sides e registros ao vivo e ainda alguns singles, como o mais recente, “Leave me alone”, lançado no dia 04 de junho e gravado de forma virtual entre Nova Iorque, Londres e São Paulo. Minha intenção foi reunir os quatro fundadores (Cadão Volpato, Thomas Pappon, Jair Marcos e Ricardo Salvagni) em uma entrevista para o Scream & Yell. Ricardo não conseguiu participar, mas os outros três integrantes falaram em detalhes da formação da banda e também comentaram cada álbum. É o tipo de material que julgo como importante de constar em algum acervo público, pelo menos é o tipo de coisa que eu mesmo procuraria no futuro. Os 21 anos de acervo do Scream & Yell (cerca de 12 mil textos e possivelmente mais de 2.000 entrevistas) são obra da boa vontade e dedicação do editor Marcelo Costa, que me convidou para realizar a entrevista, e de seus diversos colaboradores. Não existe instituição que salvaguarde atualmente essa produção.

 

Desde o início da pandemia participei, já na condição de entrevistado, do programa Forçando Amizade, do cantor e videomaker Marcelo Perdido, e também falei a respeito do documentário que dirigi, “Nada Pode Parar os Autoramas”, aos portais Pop Fantasma e Célula Pop, além de uma entrevista ao canal do festival In-Edit. Com o Perdido fiz um resumo da minha trajetória na música e com os outros repassei a história de um disco da banda Autoramas que se confunde com a própria música independente brasileira. As pessoas que me entrevistaram (Marcelo Perdido, Ricardo Schott, Carlos Eduardo Lima e Marcelo Aliche) são produtores independentes de conteúdo sobre cultura no Brasil, na maioria das vezes sem retorno financeiro direto ou apoio de instituições públicas ou privadas.

 

Entrevistas são registros que reconstituem épocas, muitas vezes são as únicas fontes históricas que o tempo preserva. O resgate do passado de obras culturais depende dessas mensagens jogadas por abnegados dentro de garrafas ao mar do esquecimento. Uma parte considerável delas inclusive perdemos depois com incêndios, inundações, descaso, fim de conglomerados de internet e servidores de hospedagem ou falta de políticas públicas para a conservação de documentos.

 

 

A inauguração do novo prédio do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro continua uma incógnita, a obra se arrasta desde 2009. Com mais de 50 anos de história, o acervo de depoimentos da instituição conta com apenas cerca de 1.000 entrevistas. Há mais de um ano fechada, a Cinemateca Brasileira pode ter perdido cerca de 1.000 filmes e parte do acervo do Canal 100, um dos registros fundamentais do esporte brasileiro no século XX. O acervo privado da MTV Brasil, com milhares de entrevistas e registros ao vivo de artistas brasileiros, passou sete anos na antiga sede da emissora sem as condições ideais de armazenamento e até hoje não está aberto ao uso em pesquisas, trabalhos acadêmicos, audiovisuais ou editoriais. O “Nada Pode Parar os Autoramas” seria um documentário muito melhor se tivéssemos acesso ao acervo.

 

 

A situação da preservação de arquivos digitais nem se fala. Não existe uma política nacional unificada para doações a acervos públicos e muita coisa já se perdeu com o fim de grandes portais e serviços de hospedagem de blogs. O portal Tramavirtual acabou em 2013 e parte da produção musical brasileira independente (músicas e entrevistas) dos anos 2000 foi perdida. É só um exemplo dos inúmeros casos de apagamento da memória online da produção literária, gráfica, musical e audiovisual a partir da metade dos anos 90 no Brasil. O que morreu junto com o Orkut? Quanto perderíamos com um futuro encerramento dos servidores do YouTube? As entrevistas não são transcritas, os arquivos virtuais não ficam preservados em instituições. O processo de guardar só pequena parte de nossa história cultural empobrece muito as visões do passado.

 

 

Participei da equipe do programa Observatório da Imprensa entre os anos de 2003 e 2005 (na época transmitido pela TVE-RJ, hoje chamada TV Brasil). Uma das minhas atividades constantes como estagiário era a solicitação de imagens e entrevistas no acervo da emissora. Grande parte do material estava preservada em mídias analógicas, como filmes 35mm e fitas em formato U-matic, VHS e Betacam. Muita coisa não conseguíamos usar pela complexidade de transcrição do material. Imagens que provavelmente só existem lá. Até hoje esse acervo não é de fácil acesso para pesquisas ou mesmo a compra para usos diversos. Participei posteriormente, entre 2005 e 2013, de alguns programas como entrevistado na TV Brasil e gostaria muito de ter uma cópia do material. Não ganhei e nem posso copiar de forma legalizada. Felizmente em 2018 participei do Sem Censura e pude copiar (de forma não tão legalizada assim) a íntegra publicada no YouTube.

 

A escolha do que será lembrado é uma decisão política. A própria formação do cânone nas artes é determinada pelo que sobra ao longo dos anos como registro formal. Quanto mais apagamos a diversidade de pensamento mais restrito fica o passado e a construção de um futuro cultural plural. É também ativismo político produzir outros registros e lutar para que permaneçam. Novas gerações podem querer descobrir e ressignificar. Não deixar esquecer é uma luta fundamental para resistir.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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