Nada pode parar os Autoramas – um marco

 

 

A Célula Pop é um site independente e sem rabo preso. É uma vida dura, de trabalho constante, pouquíssima grana, mas com a certeza de estar fazendo o melhor. De vez em quando a situação pesa, a gente balança, mas segue firme até onde for possível. Ver histórias como a do Autoramas, banda carioca formada em 1998, com Gabriel Thomaz, Simone do Vale e Bacalhau, é ter a certeza de que os perrengues compensam. Seu terceiro disco, “Nada Pode Parar Os Autoramas”, foi lançado em 2003. Quem o visse nas lojas – nas poucas e boas – e prestasse atenção ao clipe de “Você Sabe”, veria que ali estava uma banda lutadora, mas não faria ideia do tanto de força que foi preciso para que o grupo continuasse a existir. Este álbum mudou tudo na carreira dos Autoramas.

 

Essa história vem à tona com o documentário “Nada Pode Parar Os Autoramas”, dirigido, produzido e finalizado por Manoel Magalhães e Bruno Vouzella, também músicos independentes e batalhadores. O documentário de 20 minutos está inscrito no Festival In-Edit e será exibido dos dias 9 a 20 de setembro no site do evento .

 

Mais do que um filme, é outro ato de bravura, de idealismo na tentativa de fazer algo novo e diferente num país como o Brasil. Assim como os Autoramas fizeram. Assim como a Célula Pop faz. Assim como vários outros sites, artistas, escritores, jornalistas – todos independentes – fazem. Somos da mesma família, nos ajudamos.

 

Bati  um papo com Manoel, um conhecido de outros tempos, desde quando era vocalista e guitarrista de uma banda chamada Polar.  Fico feliz por ser ele um dos idealizadores deste projeto.

 

 

 

 

– “Nada Pode Parar os Autoramas” não é um documentário apenas sobre a banda, mas sobre  um disco. Explica isso pra gente.

 

É um documentário sobre o terceiro disco dos Autoramas, que a gente entende como um marco na carreira da banda. Até então, eles tinham lançado dois outros trabalhos pela Astronauta Discos, que era da Universal Music, que tanto ajudou na produção como um pouco na divulgação. A banda teve uma ajuda interessante da gravadora, porque os clipes destes dois primeiros álbuns foram veiculados bastante, principalmente do primeiro (“Stress, Depressão & Síndrome do Pânico”, de 2000), especialmente “Fale Mal de Mim” e “Carinha Triste”, que passaram bastante na MTV. Foi um auxílio, a Universal nunca investiu muito dinheiro na banda, o auxílio foi mais pra produção do discos, que é um assunto muito abordado no documentário.

O “Nada Pode Parar Os Autoramas” foi primeiro disco que a banda teve que fazer do próprio bolso, num período em que isso era muito mais difícil do que hoje em dia. Todo mundo hoje tem um computador, pode fazer de forma lo-fi, a tecnologia está muito mais barata, os equipamentos de estúdio baratearam muito, mas, naquela época (2003) era muito difícil fazer um disco. O Gabriel (Thomaz, vocalista e guitarrista da banda) toca nesse assunto, sobre como os primeiros estúdios caseiros eram caros.

A gente quis abordar essa peculiaridade desse disco como uma mudança, como o embrião de uma transformação, porque os Autoramas conseguiram criar uma forma de fazer que é inovadora até hoje. É uma banda que se sustenta, construiu uma carreira internacional super respeitada e lucrativa. Os shows dos Autoramas fora do Brasil acabam ajudando a sustentar a carreira da banda. Quisemos abordar esse disco como um símbolo da mudança da música independente no Brasil. Ele, por exemplo, rendeu um videoclipe – “Você Sabe” – que ganhou cinco VMB’s e que ajudou muito na construção de uma carreira independente, a turnê do “Nada Pode Parar…” foi muito maior que a dos dois primeiros discos.

 

 

– Sabemos que topar o desafio de produzir e filmar hoje no país é um ato de bravura. Como foi para realizar o projeto?

 

Olha, foi bem complicado. Ele era um projeto de série, com treze episódios, sobre a música independente no Brasil. Esse episódio dos Autoramas fizemos só eu e o Bruno (Vouzella), não tem mais ninguém nos créditos porque eu roteirizei, o Bruno filmou comigo, eu produzi as entrevistas, a gente conseguiu, na amizade, filmar no sebo Baratos da Ribeiro com a Simone (do Vale, ex-baixista da banda), filmar na amizade com Bacalhau (ex-baterista da banda) no estúdio Superfuzz, que era um estúdio clássico daqui do Rio, que não existe mais. Fomos à casa do Gabriel, que nos recebeu e conversou longamente com a gente. Então a gente fez, eu e Bruno, num esquema de guerrilha mesmo, o filme é todo produzido por nós. A pesquisa, o roteiro, a edição, é tudo feito por nós. A gente contou com o Ricardo Schott (jornalista) nesse episódio.

Essa série sobre a música independente começaria com o Antônio Adolfo, mostrando como eram os pioneiros, como era praticamente impossível e depois terminaria com a geração da Internet, com Cícero, gente que não precisa de disco físico, que faz muito sucesso no streaming. Cada episódio ia contar a história de um grande disco, que, de alguma forma forçou esse caminho na música independente brasileira. A gente ia falar de Arnaldo Baptista, de Racionais MCs, de um monte de gente legal. Do Lenine, com o disco “Olho de Peixe”. Este está quase pronto. Já havíamos encontrado uma produtora, que se interessou, que resolveu ajudar a bancar o projeto. Chegamos a assinar um contrato com o Canal Music Box, só que paramos na burocracia do audiovisual. A Ancine, que vinha bem, financiando muitos filmes pelo Fundo Setorial do Audiovisual, simplesmente parou no final do governo temer. Com o começo do atual governo, se estagnou. Parece que agora, não sei, eles vão conseguir negociar a aprovação das produções de 2018, talvez, ninguém tem certeza. Quem queria produzir em 2019 e 2020 vai ficar esperando ao Deus dará, ninguém sabe se isso vai sair em algum momento.

Um projeto como esse é fundamental pra produção independente no Brasil. Não existe isso de uma forma teorizada, de uma forma organizada.  Por isso a gente está lançando esse curta, inclusive pra tentar, de alguma forma, achar outros caminhos, investimentos, até internacional. A gente está tentando de tudo pra tocar essas ideias. É um objetivo nosso – meu e do Bruno – não deixar essa ideia morrer, de ter algum tipo de documentação audiovisual pra toda uma produção que fica à margem.

 

 

 

– O doc está inscrito num festival, o In-Edit, né? Onde ele poderá ser visto?

O filme estreia no dia 9 de setembro no In-Edit Brasil. É o maior festival de documentários musicais do mundo. Tem edições em vários lugares, Espanha, Chile, Holanda…a edição brasileira é a 12ª. Vai ficar disponível na plataforma do festival até o dia 20 de setembro. A gente deve ter em outros streamings, ainda vamos confirmar essa informação. O festival vai ter uma live dos Autoramas em homenagem ao filme e isso é sensacional pra visibilidade da banda nesse momento. É muito bom comemorar o marco do disco e o filme com um show deles. É ótimo que um evento desse porte dê espaço pros Autoramas, a gente considera uma vitória de quem luta e milita pelo independente no Brasil. Ter esse reconhecimento é sensacional. A gente vai fazer o máximo pra divulgar os lugares onde o filme vai passar além do site do festival.

 

 

– Como foi o contato com Gabriel Thomaz, Bacalhau e Simone? Eles também reconheciam no disco um marco na carreira da banda?

 

Foi sensacional o contato com eles. Acho que tinha muito tempo que eles não falavam sobre isso, mas os três reconheciam o disco como uma grande mudança na vida deles e da banda. Não é por acaso que o disco se chama “Nada Pode Parar Os Autoramas”, o Gabriel e a Simone reiteram isso, virou um mantra. Eles passaram por muita dificuldade financeira pra manter a banda, pra fazer o disco. O Gabriel e a Simone contam histórias inacreditáveis, ótimas, a gente nem tá querendo divulgar muito pra não estragar a surpresa do filme. O Schott também fala disso, são histórias engraçadas e edificantes.

A Simone fala uma coisa muito interessante. O “Nada Pode Parar…” é um disco dos outsiders, que mostra as pessoas que não se acomodam, que querem sair de um modelo morto. Os Autoramas sacaram que o esquema das gravadoras estava matando o rock no Brasil e que não iria durar muito tempo. E que eles tinham que descobrir uma forma de construir a história deles, por eles mesmos. Isso é muito bonito. O Gabriel conta que eles sofreram muito preconceito quando saíram da Universal, que muita gente olhava pra eles e ria, fazia piada. Que muita gente desapareceu, que ele sofreu demais. É muito interessante ver os depoimentos porque eles demonstram que o disco foi uma volta por cima na vida mesmo. O Gabriel ficou muito mal com a quantidade de críticas, como as pessoas olhavam pra banda. Foi a construção na raça de um caminho novo, de vitória mesmo, que possibilitou uma carreira com 48 turnês internacionais. Achei muito bonito o que a Simone falou, que é um disco dos outsiders, ela sintetizou de uma forma maravilhosa o que é o disco. Imagina como seria se a gente conseguisse produzir treze episódios com essa síntese, com outra visão de mundo, de uma outra visão de produção de arte, é isso que a gente não pode deixar morrer.

 

 

– Assim como o Autoramas no doc, você e o Bruno Vouzella são músicos independentes. Como é esta realidade de fazer arte relevante no Brasil fora da mídia?

 

Olha, é uma realidade muito difícil, mas, por outro lado, eu acho que é o único caminho possível. É o único jeito de produzir algo que dialogue com aquilo que a gente acredita. Eu acho que o maior vácuo que existe na produção independente é um vácuo de documentação mesmo. As instituições públicas não se importam em guardar isso, eu nunca vi um grande projeto de um Museu da Imagem e do Som ou de algum outro tipo de instituição pública nesse sentido. Os discos que foram feitos muitas vezes são perdidos, não tem cópia, registros, organização são perdidos. Muitos sites com resenhas maravilhosas, com coisas importantes se perderam. Ninguém tá te ajudando a fazer o Célula Pop ou a guardar o material do Célula Pop. Na verdade, somos todos abnegados e apaixonados, tudo o que você faz, se você não cuidar, ninguém vai cuidar. Tudo o que o Marcelo Costa (do site Scream & Yell) faz, se ele não cuidar, ninguém vai cuidar, eu sei de várias histórias. E os próprios Autoramas também…se a gente não fizesse esse filme, talvez muita gente não soubesse da história, ela poderia parar num limbo no qual ninguém saberia dela, ela não seria contada, não seria guardada.

Então eu acho que uma das coisas que a gente precisa começar a pensar, como grupo, como gente que tenta fazer algo diferente do que é hegemônico, é começar a pensar em formar de guardar isso, de mostrar que nem sempre o que é hegemônico no Brasil foi sempre assim, que tem gente que pensa diferente, que tem muita coisa boa sendo feita, que essas coisas não podem ser desperdiçadas, não podem ir parar na lata do lixo. A gente tem que fazer o máximo, não sei como, mas gente tem que fazer tudo o que a gente puder pra que isso não seja assim.

A gente tem que usar as instituições também. A tentativa com a Ancine era nesse sentido, de fomento mesmo. Eu acho que até o final da minha vida eu vou lutar pra que essas coisas ganhem um caminho institucional. Que pena que a gente não está no meio institucional pra fazer essas coisas acontecerem. Mas é por isso que a gente tem que lutar, tudo isso tem muito valor.

 

 

– Você acha que a experiência dos Autoramas em 2003 ainda serve como parâmetro ou a Internet em maior escala diminuiu o impacto?

 

A única coisa que eu vejo de conexão entre a história dos Autoramas e hoje é a mensagem que você tem que fazer aquilo em que acredita, independente se o ambiente tá favorável ou não. E ter fé sobre o que você faz ser pessoal e capaz de emocionar outras pessoas. Acho que, até hoje, uma das coisas mais difíceis é ver um artista independente dizendo que se sustenta absolutamente com a sua música e sua carreira. Os Autoramas, como ideia, são um exemplo que vai ficar. A Internet trouxe muitas coisas, é um contexto histórico bem diferente, você tem a possibilidade de gravar um disco digitalmente na sua casa, monetizar isso de outras formas, hoje é muito mais fácil. Mas, alguém que assiste hoje, consegue, de alguma forma, contextualizar as facilidades atuais e também, ao mesmo tempo, pensar em quais são as dificuldades de hoje. Chuva de informações, menos gente interessada, o ouvinte de música mudou, mas o exemplo que fica é o de ter fé, independente de ser favorável.

Eu vejo na produção independente essa coisa de ficar repetindo fórmulas…são duzentos Los Hermanos iguais há 20 anos e isso não contribui, inclusive, pra que a cena se fortaleça. Faz o que você tem fé, segue isso e luta por isso.

O exemplo dos Autoramas é acreditar no que se faz e ir às últimas consequências por isso.

 

 

 

Nada Pode Parar os Autoramas – Bruno Vouzella, Manoel Magalhães | Brasil | 2020 | 20’

Produção: Estúdio 8-bics 

Estreia: 9 de setembro de 2020 – Festival In-Edit Brasil

Site Oficial: aqui 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Nada pode parar os Autoramas – um marco

  • 3 de setembro de 2020 em 19:06
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    Parabéns!!!! Pelo texto, entrevista, iniciativa … Muito legal mesmo!!!!

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    • 3 de setembro de 2020 em 20:05
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      Valeu, Big Xande. Temos que dar espaço pra esse tipo de iniciativa, rapaz. Obrigado pelos comentários frequentes!

      Resposta

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