Entrevista Clarice Falcão

 

Eu gosto muito de música eletrônica que você ouve na pista e pode dar uma choradinha.

 

 

Clarice Falcão é uma artista peculiar. Talentosa, inteligente, atriz, cantora, compositora. Sua imagem é quase indissociável de uma classe média alta carioca, ilustrada e privilegiada sob vários pontos de vista. Apesar disso, sua carreira é peculiar e ousada. Ela não tem medo de vivenciar experiências em público, compartilhar emoções e, acima de tudo, transparece sinceridade.

 

Depois de três discos lançados, nos quais conseguiu mostrar uma identidade própria, oscilando do folk à música eletrônica, sempre dando importância às letras, Clarice hoje é uma cantora e compositora com preocupação maior em relação aos elementos melódicos e aos arranjos. Ela lançou um EP chamado “EU_ME_LEMBRO”, no qual revisita faixas antigas e imprime sua marca atual, a do amor pela música sintética.

 

Nesta entrevista ela fala sobre como enxerga a música eletrônica dentro de sua obra, seus métodos de composição e compartilha seus medos sobre a pandemia de Covid-19, do mesmo jeito que faz com suas interpretações e canções: sinceramente. Boa leitura.

 

 

 

– Como surgiu a música eletrônica na sua vida e de quais artistas deste segmento você gosta?

Clarice: A música, de alguma forma, sempre esteve presente. Quando eu tinha dezesseis anos, tinha um fã clube da Bjork, tipo um fotolog em que eu só postava fotos dela. Eu era muito fã, fui pro Tim Festival pra ver a Bjork e tal. E curtia alguma coisa de eletrônica mais pop, como Postal Service. Daí eu enveredei pro folk muito porque o instrumento que eu sabia tocar era o violão. Eu curtia esse som também, além do mais, achava que era uma forma de valorizar as letras, algo que eu sempre gostei de fazer. Há uns quatro, cinco anos, comecei a ir em festas de eletrônica mais underground – Mamba Negra, Até Às Quatro, Selvagem – e comecei a me reapaixonar por este universo, tanto pela cena, que eu acho muito inclusiva e muito política, quanto pela própria música mesma. Então, na hora de fazer o “Tem Conserto” – último álbum – eu sabia que queria fazer algo nessa vibe. Eu gosto muito de música eletrônica que você ouve na pista e pode dar uma choradinha. Então eu gosto muito de Robyn, Depeche Mode, aqui no Brasil eu acho o Noporn incrível.

 

– Como você escolheu as canções que fariam parte do EP?

Clarice: A única que eu sabia que ia entrar era “Eu Me Lembro”. Primeiro porque eu amo cantar essa música, ela é um dueto, proporciona encontros – já cantei com a Alice Caymmi, com a Karina Buhr, com o Moska, com o próprio Silva, na época, com o Tim Bernardes…é muito gostoso cantar ela, ela é sempre muito diferente. Os arranjos que a gente fez pro show pra que as músicas antigas não destoassem das atuais foi o que decidiu as outras. A gente foi escolhendo pelo arranjo, duas do “Monomania” e duas do “Problema Meu”, fomos vendo as que a gente mais curtia tocar.

 

– Você tem três discos muito diferentes na sua carreira. A quê você atribui isso?

Clarice: Eu mudo muito, mesmo. Eu não sei como é pros outros artistas, mas, falando por mim, em três anos eu mudo completamente o que eu gosto. Quando adolescente eu era muito fechada, eu gostava só do que eu gostava. Hoje eu gosto de explorar universos diferentes, de descobrir do quê eu gosto. Eu acho que, de outra forma, existe uma unidade nos discos, através das letras, é onde eu acho que está o DNA do meu trabalho. Dá pra saber que a pessoa que escreveu as letras do “Monomania” também escreveu “A Minha Cabeça”, do “Tem Conserto”. Apesar do pacote ser diferente, eu acho que o presente é o mesmo.

 

– Usando a música eletrônica como formato, como você tem composto novas canções?

Clarice: Abriu muito espaço pra novas formas de compor. Isso é que eu acho maneiro, porque, quando você faz um beat, algo assim, dá pra fazer um arranjo inteiro em casa, de graça, foi o que a gente fez no disco todo e no EP. Às vezes ele vinha com um beat, eu juntava com outra ideia que eu já tinha anotada há muito tempo e compunha em cima do arranjo, uma coisa que eu nunca tinha feito. Eu sempre compunha o esqueleto da canção, depois vinha o arranjo. Quanto mais ferramenta a gente tem, mais legal, eu nunca pensei que fosse compor na frente de outra pessoa, eu sempre gostei de compor sozinha. Eu sempre achei: “Ai, é um momento muito vulnerável” mas eu e o Lucas (Paiva, produtor do disco) fizemos em casa, não era no estúdio, com milhões de pessoas, era só eu e ele, então a gente ganhou uma intimidade…às vezes eu fazia um monte de merda, daí ele dizia: “Isso tá uma merda!” e eu dizia: “Eu sei, vamos refazer!”

 

 

– Você é uma artista que tem muito a falar nas suas letras, uma contadora de histórias, bem típica da folk music. Como adaptar isso para o formato eletrônico sem perder a essência?

Clarice: Então, foi uma grande preocupação minha. Eu acho que o primeiro disco é muito folk, em grande parte, por causa disso. Ele é assim pra valorizar as letras, ninguém me conhecia, eu tava começando naquele momento, eu não tinha fãs, as pessoas não gostavam da minha música ainda. Ao passar pra música eletrônica, eu quis manter o mesmo raciocínio que eu usava para o folk, que é: eu acho mais interessante quando o arranjo conversa com a letra, até quando eles “brigam”. Eu acho muito divertido, gostei muito de fazer uma música que é sobre estar deprimido, na cama e ser super pra cima, é house, pra tocar na pista. E você tá lá, na pista, cantando “Eu não saio dessa cama nem a pau”. É mais ou menos o que eu fazia no “Monomania”, cantar com doçura enorme “eu vou assassinar você com cianureto”. Eu sempre gostei do contraste entre o som, o clima e o que eu tô dizendo. A gente é muito assim, cheia de paradoxos…Tem outra coisa, eu acho que música de pista pode, sim, ser reflexiva. Eu acho que a pista é um lugar de reflexão. Eu, pelo menos, quando estou dançando, ninguém conversa, é um lugar muito terapêutico, nesse sentido. Pra mim ficou combinando.

 

– Como seus fãs de primeira hora lidaram com essa fase eletrônica? Teve gente reclamando ou algo assim?

Clarice: Sim, mas, estamos em 2020, em plena era da Internet. Sempre tem gente reclamando. Se você for se guiar por gente reclamando, você não faz nada. Se eu continuasse a fazer a mesma coisa, ia ter gente dizendo: “faz sempre a mesma coisa, não muda!”. O que eu sempre tentei fazer, o que eu espero que sempre faça, é fazer o que é genuíno pra mim, naquele momento. Vou fazer o que eu estou ouvindo naquela hora. O mais maneiro é que teve muita gente que gostou. Gente que gostava do “Monomania”, que gostou. Eu acho que as pessoas também vão crescendo junto com a gente. Se a gente tenta reproduzir alguma coisa que fez sucesso há anos atrás, primeiro, que não tem originalidade; segundo, não vai ser genuíno; terceiro, pode ficar datado, porque era alguma coisa que eu gostava naquela época.

 

– Por que você acha que as pessoas têm implicância com a eletrônica em pleno 2020?

Clarice: Eu acho que existe uma coisa meio purista, de achar porque não estão tocando os instrumentos ao vivo, não é acústico, então não tem valor. Eu acho que é parecido com que aquela época em que fizeram passeata contra a guitarra elétrica, é um purismo de que a gente não pode misturar as coisas, a música brasileira não pode se misturar com guitarra e é tão bonito a gente ver as coisas se misturando, sabe? Além disso, a noção de música eletrônica é tão ambígua…Música eletrônica é quando é só eletrônico? E se tiver um teclado numa música folk? É eletrônica? A música eletrônica é um conceito muito amplo, nós temos elementos…no “Tem Conserto” com contrabaixo acústico, o resto todo é eletrônico, então ela deixa de ser música eletrônica? É um conceito muito amplo, acho que muita gente associa àquela música eletrônica de “Tomorrowland” (Um dos maiores festivais do gênero). Nada contra, mas a gente tem muitos gêneros de música eletrônica, de muitas formas diferentes… Só de botar tudo no mesmo saco de “música eletrônica”, a pessoa já tá perdendo tantas nuances…as pessoas achatam o conceito.

 

 

– Você e a Letrux são duas importantes cantoras e compositoras de uma música carioca que parecia ter sumido do mapa. Como foi gravar com ela?

Clarice: Foi maravilhoso. A gente já tinha feito um dueto ao vivo, no Circo Voador, na turnê do “Problema Meu” e foi muito especial. A gente deu um beijão no palco, ela mais, deu um beijão em mim, porque ela me pegou de jeito. E foi muito lindo. Eu sou muito fã do trabalho dela desde o Letuce. Sou fã dela como artista, no sentido renascentista do termo, que faz tudo. Ela é poeta, desenha, é atriz, é compositora, é intérprete, ela é muito foda. Fiquei muito feliz que ela aceitou o convite e fiquei muito honrada de ter ela no disco.

 

 

– Falando em 2020, o que você está achando dessa situação inesperada da pandemia? Como você está lidando com a quarentena?

Clarice: Acho que ninguém sabe muito o que achar, né? Acho que está sendo uma situação muito nova pra todo mundo, acho que ninguém nunca imaginou que a gente fosse passar por isso. Eu estou tentando ficar sã, mas, no fim das constas, acho que ajuda pensar em como eu sou privilegiada de poder ficar em casa, de ter um dinheiro guardado – ok, é pra outras coisas – mas ele existe, eu posso me dar ao luxo de ficar em casa, de não trabalhar ou de trabalhar à distância, produzir coisas pela Internet…Óbvio que é difícil pra cabeça, ainda mais pra mim, que fiz um disco sobre ansiedade e depressão. É uma situação que desestabiliza a gente, né? Eu fico mal de reclamar porque tem muita gente numa situação muito pior que a minha. A gente tem que fazer o possível pra ajudar, pesquisar, tem muitos projetos que estão fazendo coisas muito legais, de levar alimentos pras favelas, então eu estou focada no geral. Se a gente fica só com a cabeça dentro de casa, então, realmente, a gente enlouquece.

 

 

– Como lidar com gente que nega o perigo da Covid-19? Você conhece gente assim?

Clarice: Eu conheço gente que demorou pra cair na real, sabe? Acho que todo mundo demorou, acho que teve gente que demorou um pouco mais, de eu falar: “Não! Isso é muito sério!” e a pessoa: “Não, imagina…”. Agora eu acho que todo mundo que eu conheço já está – não vou falar desesperado – tomando as precauções, enfim…Mas eu sei que existem essas pessoas que negam e que acham que não é sério. Agora até o infeliz presidente já falou que é sério em rede nacional, desmentindo tudo o que ele disse antes, pra variar…Eu acho que tem muita gente que não pode ficar em casa. Gente que, pra sobreviver, precisa sair na rua e se expor, sabe? E não sobreviver e, enfim, espalhar…É muito triste, é uma situação que expõe muito a desigualdade do nosso país. É uma pena.

 

– O que você vai fazer assim que o confinamento for suspenso?

Clarice: Cara, eu queria muito dizer que eu vou assistir uma peça, mas, com certeza eu vou pra rave. E … (alguém fala ao fundo) VOU LANÇAR MEU CLIPE! O meu namorado tá aqui e acabou de fazer o suspiro de quem sabe gerenciar a carreira. Eu vou lançar meu clipe, o clipe de “Dia D”, tá maravilhoso, é um dos melhores que eu já fiz, tá muito legal. Daí teve essa história e a gente achou que era, não só de mau gosto lançar um clipe com uma música que fala “hoje eu vou dar, finalmente chegou o dia em que eu vou dar” e ninguém vai poder sair pra dar? Eu quero lançar esse clipe e eu quero quero que as pessoas vejam o clipe e saiam pra dar. Corta a resposta da rave! (risos).

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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