Elis & Tom: disco, filme e significado

 

 

Em certa altura do filme “Elis e Tom, Só Tinha de Ser com Você”, o engenheiro de som chileno, radicado nos Estados Unidos, Humberto Gatica, sentencia: “este foi um trabalho que mirou o futuro. A música há um bom tempo não faz isso, é tudo pra já, pra ontem, muito mais negócio do que arte”. Para Gatica, o álbum tem uma importância à parte, visto que marcou sua estreia na função e abriu o caminho para uma carreira vitoriosa, que lhe traria, entre outros prêmios, quinze Grammys e a oportunidade de trabalhar em obras como … “Thriller”, de Michael Jackson, produzido por Quincy Jones, em 1982. Tanto o longa, do diretor Roberto de Oliveira, quanto o próprio álbum, produzido por Aloísio de Oliveira, em 1974, têm o tempo como seu principal mecanismo. Um, de fato, foi pensado e concebido como algo feito para durar e o outro busca detectar esse efeito após cinquenta anos, revelando detalhes e histórias sobre seus bastidores. Ambos, disco e filme, são essencialmente importantes para o Brasil.

 

 

Antes de falarmos sobre essas nuances, vamos aos fatos. “Elis & Tom” nasceu como um disco da intérprete gaúcha, fruto de uma oferta de sua gravadora, que comemorava os dez anos de Elis na companhia. O diretor da Philips-Polygram, André Midani, comunicou a Elis que ela poderia pedir qualquer coisa. “Um carro, uma viagem ao exterior, qualquer coisa” – diz Midani em depoimento do longa. Elis escolheu poder fazer um disco. “Mas isso você faz todo ano”, disse Midani a ela e no filme. “Sim, mas não esse disco”, revelou Elis, dizendo que queria trabalhar com Tom Jobim. Midani assentiu: “É, esse disco não acontece todo dia”. Àquela época, fim de 1973, Elis, com 29 anos, era a cantora mais popular do país e estava em franca expansão criativa, lançando um álbum por ano desde 1968. Nestes trabalhos era possível perceber uma artista capaz de cantar praticamente tudo, do jazz ao samba, passando pela black music e pela MPB. Até pela Bossa Nova. Elis gravou “Estrada do Sol”, de Tom Jobim e Dolores Duran, em 1971, “Águas de Março”, de Tom, em 1972 e até mesmo um medley especial, dedicado ao compositor, em seu álbum de 1968, “Elis Especial”, o que confirma sua admiração por Tom.

 

 

A recíproca talvez não fosse tão intensa. Vivendo na ponte aérea Rio-Los Angeles há alguns anos, provavelmente amargurado e a três anos de completar cinquenta anos, Tom Jobim não devia ser figura fácil de lidar. A amargura vinha de uma situação simples, porém paradoxal: o sucesso e o reconhecimento que Tom desfrutava nos Estados Unidos eram muito maiores do que no Brasil. Mais ainda: o país que cantara na Bossa Nova, cuja imagem havia corrido o mundo como uma das mais gentis utopias do século 20, jamais chegara a existir e até a promessa de vida em seu coração havia sido ceifada já fazia dez anos. Se Elis comemorava seus dez anos na Philips, todos os brasileiros lembravam do mesmo tempo sob ditadura militar. E Tom vinha numa mutação estética em sua carreira, deixando a Bossa para trás a partir de 1967, quando gravou seu magistral álbum com Frank Sinatra. No ano seguinte, fora vaiado por um Maracanãzinho lotado e furioso por sua canção, “Sabiá”, em parceria com Chico Buarque, ter vencido “Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores”, de Geraldo Vandré. No palco, sob vaias, Tom – já prestigiadíssimo no exterior – cantava sobre o país que não mais existia, motivação para um triste exílio, mas a sutileza da letra de Chico e a tristeza cortante da melodia eram sutis demais para aquele 1968 tão intenso e decisivo.

 

 

Os discos que Tom gravara desde 1967 falam por si: “Wave”, daquele ano, talvez seu momento mais jazzístico; “Tide” (1970), com arranjos de Eumir Deodato, mostrava o desejo do compositor em modernizar sua obra; “Stone Flower” (1970), talvez seu trabalho mais triste e sofrido, prolongando o adeus ao Brasil manifestado em “Sabiá”, não por acaso, incluída no tracklist. E “Matita Perê”, de 1973, o marco zero de sua novíssima música popular-erudita, abraçando o Brasil Grande, verde, dos povos originários, da gentileza e cordialidade perdidos. Sim, Tom gostava de inventar Brasis e tinha motivos pra isso, tanto que quase encapsulara o país numa única canção, “Águas de Março”, uma das mais impressionantes composições populares da história, que ele gravara em 1972 para um compacto da revista “O Pasquim” e que entrara no repertório de “Matita”. Além dele e da própria Elis, a canção fora gravada por João Gilberto, em seu álbum branco de 1973. Nascera clássica. A amargura de Tom, talvez a saudade dos tempos idos, da juventude, meio que foi traduzida por seu parceiro mais querido: Vinícius de Moraes que, no mesmo ano de 1974, gravou “Carta Ao Tom 74”, em que enfileira lembranças de dez, quinze anos antes. “Nossa famosa garota nem sabia a que ponto a cidade turvaria, esse Rio de amor que se perdeu”.

 

 

Para “Elis & Tom”, no entanto, Tom precisaria ficar relativamente contido. Após os contatos iniciais e da chegada de Elis a Los Angeles, ficara combinado que os arranjos seriam feitos por César Camargo Mariano, marido da cantora e seu band leader desde 1971, além dos músicos que a acompanhariam, todos integrantes de sua banda regular, a saber, Helio Delmiro (guitarras), Luizão Maia (baixo), Paulo Braga (bateria), além do próprio César nos teclados, pianos e tudo mais. Tom, um mestre da composição, da música brasileira latu sensu, duvidou da capacidade de César e instaurou-se um clima tenso logo de cara. No fim das contas, tocou piano e violão ao longo do álbum. Outro músico, Oscar Castro-Neves, tocou violões. Além disso, como dissemos, Elis não era exatamente o tipo de cantora que Tom escolheria para uma colaboração tão firme e forte. Mas, segundo os relatos do filme, o que era tensão e disputa de espaço foi dando lugar a um respeito mútuo, seja pela dedicação de todos, seja pelo evidente talento manifestado. No entanto, a existência de tanta tensão no estúdio é surpresa para quem se encanta com a célebre sequência de imagens que acompanha a divulgação de “Águas de Março”, na qual ambos cantam e parecem se divertir intensamente. Não parece que aquela sinergia só surgiu depois de muito trabalho e tensão no estúdio.

 

 

Se engana, porém, quem pensa que o álbum foi fruto de vários dias de peregrinações constantes ao estúdio, pelo menos não na gravação. Todas as faixas e arranjos foram registrados num único dia, com sessões ocorridas na parte da manhã – para orquestrações – com a banda assumindo seu posto na tarde e na noite. O trabalho imenso, intenso e explosivo ocorreu todo fora das sessões de gravação, quando os músicos e Tom definiram arranjos e abordagens das quatorze faixas de “Elis & Tom”.

 

 

O resultado do álbum é quase unanimidade. Um trabalho pra história, um disco essencial, um clássico brasileiro de todos os tempos. Nenhuma dessas afirmações está errada mas eu me permito abordá-lo de outra forma. Mais que a música, “Elis & Tom” tem o tempo. O transcorrer dele é o que alimenta o disco e que, a meu ver, lhe dá uma imensa tristeza, uma prostrada e inevitável sensação de finitude. Tanto Tom quanto Elis estão se despedindo de algo, talvez de si mesmos, de uma forma clara e sofrida. Ela, famosa, precisando de um sucesso que apagasse a memória recente de sua aparição em evento da ditadura civil-miltar brasileira, no caso, as Olimpíadas do Exército, algo que, segundo consta, ela foi obrigada e constrangida a fazer. Tom, por sua vez, amargurado e vivendo uma transição em sua vida, tanto na arte, quanto na família. Dois anos depois, ele lançaria o soberbo álbum “Urubu”, que aprofundava seu momento ecológico-musical; mais dois anos, em 1978, e Tom estaria vivendo com Ana Beatriz Lontra, que se tornaria sua segunda esposa, com quem teria dois filhos: João Francisco e Maria Luiza.

 

 

Elis, mais que tudo isso, seguiria sua carreira com um disco emblemático: “Falso Brilhante”, também de 1976, que lhe daria muito sucesso e confirmaria sua pluralidade de estilos, com destaque para a aproximação com o Blues, especialmente na notória interpretação de “Como Nossos Pais”, de Belchior. Sua inquietação e constante angústia com o estado das coisas, de sua trajetória, sua vida pessoal, a levariam num processo de autodestruição, resultando em sua morte, em 1982. Tom, por sua vez, ainda teria uma prolífica década de 1980, com álbuns, participações, trilhas de novela e uma parte do reconhecimento por sua carreira vindo. Após um promissor início de anos 1990, com o lançamento de “Antônio Brasileiro”, ele morreria em 1994.

 

 

“Elis & Tom” é um clássico da música brasileira. Não é um disco de Bossa Nova, é mais um disco de jazz e MPB. A interpretação de Elis, dizem, coloriu e contrabalançou a economia sentimental e a contenção dos originais jobinianos, mas eu acho que eles funcionam melhor em sua origem, justamente contidos e sérios. Ainda acho que a melhor intérprete do repertório de Tom Jobim foi Nara Leão, mas não digo isso com a intenção de diminuir o registro que Elis fez de suas canções. Não dá pra desapegar de sua leitura de “Águas de Março”, da fofura de “Chovendo na Roseira” ou da tristeza cortante de “Retrato em Branco e Preto”, todas muito intensas. Aliás, Tom devia se orgulhar de ter tanta gente boa cantando suas músicas. Elis, Frank Sinatra, Nara Leão e, sete anos depois de “Elis & Tom”, a diva Ella Fitzgerald, que lhe dedicaria um disco inteiro, chamado “Ella Abraça Jobim”, produzido pelo mesmo Humberto Gatica.

 

 

 

 

Se eu posso dar um conselho a você, que lê esse texto: vá ver o filme, ouça o disco, tente perceber a imensa e palpável melancolia que ele transmite. Não por acaso, Elis escreveu em sua contracapa:

“Nos meus dez anos de gravadora, ganhei de presente um encontro com Tom. Foram momentos vividos por duas pessoas muito tensas, que só conseguem se descontrair através da música. Ficou a saudade de um passado recente, em que as cores eram outras e as pessoas mais felizes.”

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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