Quando Seu Gilberto foi rock

 

 

Não mencionar “Raça Humana” em listas de discos importantes do Rock nacional dos anos 80 é uma grande omissão. Talvez porque as relações de grandes álbuns daquele período passem, necessariamente, por uma ideia de renovação, de chegada de artistas que estavam lançando suas primeiras obras naquele momento. Muito do que se associa ao Rock feito no país naquela década tem a ver com a entrada do Brasil num trilho certo, após tanto tempo de emperro durante a ditadura militar. Esse juízo é falho e nos leva a deixar alguns trabalhos de artistas que já estavam com carreiras consolidadas e, de alguma forma, tangenciaram o universo do Rock naquele momento.

 

Gilberto Gil foi um destes artistas limítrofes em relação ao idioma do Rock. Desde o início da Tropicália, passando pelo exílio em Londres, onde curou seu bode peregrinando por casas de show e festivais, Gil sempre teve muita disponibilidade em aceitar influências externas, sobretudo do Rock, em seu trabalho. Sua vontade de sintonizar-se com o mundo, olhando para fora dos limites normais dos anos 70 no Brasil, o tornaram hábil nessa tradução. Seu maior companheiro de estrada, Caetano Veloso, também buscou essa sintonia, sem nunca alcançar os resultados que Gil obteve. Um de seus grandes momentos de abraço ao rock foi em 1984, quando lançou Raça Humana. O disco marca a estreia do estúdio Nas Nuvens, cuja propriedade Gil dividiu com o produtor do disco, Liminha, além do presidente da Warner na época, Andre Midani. Com equipamento de ponta e a mente arejada do produtor, Gil pode fazer sua versão do que significava a entrada em massa de influências inglesas do pós punk e dos ritmos negros, que ele já incorporara de maneira original e definitiva desde Refavela (1977).

 

Raça Humana traz o aviso de que Gil vinha em clima de total “up to date” com o que acontecia fora do país. À frente de uma banda que trazia bons músicos como o guitarrista Celso Fonseca, o baixista Arthur Maia, o tecladista Jorjão Barreto, além da participação do próprio Liminha nas guitarras e convidados como o poeta Wally Salomão e Ritchie, a quem o disco é dedicado. Os trabalhos têm início com “O Rock Do Segurança”, que já mostra uma boa levada de bateria, guitarrinhas espertas e a habitual verve do compositor em fazer letras sensacionais. “Feliz Por Um Triz” traz guitarras e saxofone em dia com a sonoridade mais moderna do rock nacional naquela época, enquanto “Pessoa Nefasta”, grande hit nas rádios em 1984, pede passagem para seu riff de teclado e andamento ultrarrápido. Logo depois vem a mais bela canção do disco, “Tempo Rei”, na forma de uma reflexão nada cabeçona sobre a passagem do tempo na vida de um homem de 42 anos.

 

O antigo lado B do disco traz, logo de cara, uma das grandes gravações de reggae já feitas por um artista brasileiro, “Vamos Fugir”, realizada na Jamaica, com participação dos Wailers, músicos que acompanharam Bob Marley. Canções belas como “Indigo Blue” e a faixa-título, com o belíssimo verso “A raça humana é uma semana do trabalho de Deus”, mostram a qualidade da safra de composições de Gil e a inspiração total que tomava conta dele.

 

Em outubro de 1984, Gil lançou o disco em show no Canecão (antiga casa noturna do Rio de Janeiro) o apresentou no palco do Rock In Rio, em janeiro do ano seguinte. Pouco tempo depois, Gil já estava novamente no Nas Nuvens, planejando seu novo disco, “Dia Dorim Noite Neon”, que prosseguia com o rock na ordem do dia. “Raça Humana” foi lançado em CD e relançado em versão remasterizada no início dos anos 00.

 

 

Texto originalmente publicado no  Monkeybuzz – link aqui.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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