Ed Motta mandou mal sobre Raul Seixas

 

Numa cena decisiva do filme “Gênio Indomável”, o psicólogo, interpretado pelo sensacional Robin Williams, diz ao menino problemático e superdotado do título (vivido por Matt Damon), que ele poderá citar autores, músicas, obras, mulheres e mais uma série de indícios que, aos olhos da maioria das pessoas, dariam conta de que ele é, de fato, uma criatura muito acima das outras. Mas, o psicólogo segue em seu diagnóstico, uma vez que se tratava ainda um jovem e que nunca sequer saíra de sua cidade natal, Boston, nos Estados Unidos, ele jamais saberia dizer, por exemplo, como seria o cheiro da Capela Cistina ou como seria vivenciar um grande amor ou ainda se comprometer com um companheiro numa situação extrema numa guerra. Ou seja, a gente pode até falar do que não viveu, desde que tenhamos tempo e capacidade para pesquisar, ponderar, submeter achismos até que eles se transformem em conhecimento. Funciona no filme, funciona na vida. Lembrei disso ao ver a treta vigente entre Ed Motta e os fãs de Raul Seixas, indignados por conta das afirmações do cantor e compositor carioca, sobre Raul ter sido “um bandido” porque “trabalhou em gravadora”, logo, “foi contra os colegas”.

 

Ed é só um ano mais novo que eu, nasceu em 1971. Já está cinquentão, ao contrário do jovem gênio indomável do filme de Gus Van Sant, que devia ter, no máximo, uns 19 anos. Já não é também a primeira treta em que ele se envolve na Internet, sempre deixando transparecer um lado ranzinza/elitista no trato com a música, capaz de encantar uns e horrorizar outros. Ed sabe do poder de suas afirmações e sabe como é complicado viver numa sociedade em que o “bom gosto” não é um conceito engessado. O que uns acham bom, outros acham ruim, e por aí vamos. É ótimo que seja assim, é próprio de uma civilização múltipla como a nossa se tornou ao longo dos séculos. Porém, por mais que avancemos no tempo, sempre temos uma quantidade pequena de pessoas que têm acesso a conhecimentos e informações que não estão atreladas a nenhum benefício prático. O conhecimento – e isso é uma praga pós-moderna que precisamos combater – se tornou algo que precisa de um lastro objetivo, um fim, uma justificativa que conceda a nós uma “permissão” para desfrutá-lo. E isso vitima a sociedade, que vai ficando cada vez mais empobrecida por conta dessa circunstância. Vejamos a música popular, por exemplo. Uma maioria esmagadora da população mundial dialoga com cantores, cantoras, bandas através do que vê e ouve na mídia. Qualquer avanço para saber mais a respeito de um artista em especial é fruto da vontade do espectador/consumidor, uma vez que a mídia não tem tempo a perder e, por sua vez, também é indexada pelos mesmo sistema de valores do conhecimento.

 

O que quero dizer com isso é que, em 2022, um cara com conhecimento musical como o Ed Motta é algo anormal. Nem todos tiveram tempo ou condição de se informar sobre o assunto como ele teve, por inúmeras circunstâncias. E ele nem precisava ter construído uma carreira musical importante como fez. Discos lançados aqui, lá fora, gravados aqui, lá fora, com um público significativo no exterior e tal. Ed faz música baseada em matriz afro-americana, como o jazz, o funk e o soul. Quando era jovem, ele deu declarações falando muito mal da música brasileira, outra manifestação que também tem matriz afro-americana. Corrigiu isso com o tempo, mostrou-se e se assumiu como fã de vários artistas da música popular feita aqui, incorporando tais influências à sua música. Cresceu com isso, ou pareceu crescer. O fato é que a carreira musical de Ed não acompanha o seu enorme conhecimento musical. Suas vivências como músico não lhe dão lastro para poder falar o que quer e o que não quer sobre música. Ele já sofreu várias vezes por comentários depreciativos como o que fez sobre o brasileiro “como camisa de time de futebol” que lhe pede para tocar “Manoel” quando está no exterior.

 

Quem segue Ed sabe que ele é bastante crítico de posturas cotidianas da classe média brasileira, que, por uma associação de ideias, se refletiria na aquisição de informações para compor um gosto “aceitável” que permitisse a estas pessoas degustar um bom vinho, ver um bom filme ou ouvir uma boa música. Ed sabe que o nosso país é vítima histórica de políticas e grupos que sempre prejudicaram a educação para mais e mais pessoas, algo que certamente traria uma situação diferente para o país. Ed também é polemista nato. Ele sabe que há certos nomes e situações que, se fustigadas por um comentário especialmente ácido, lhe renderão discussão. Como a recente fala dele sobre Raul Seixas. Ele foi longe demais. Tive a chance de entrevistar Ed Motta há quase dez anos. Foi uma ótima manhã que passei em seu apartamento, conversando sobre o seu álbum “AOR”, lançado em 2013. Eu estava lá pela Rolling Stone Brasil e dei boas risadas com o cara, que é um boa praça nato.

 

Não se trata de poder ou não poder falar mal de Raul Seixas ou de qualquer outro artista. Há quem goste e quem não goste da obra de Raul e seguimos em frente. Ninguém é obrigado a endeusá-lo, ninguém é obrigado a detestá-lo, porém, numa época como a nossa, é preciso ter cuidado e escolher as palavras. Atacar Raul porque ele foi um divulgador de gravadora é lamentável. Assim como ele, outros nomes como Roberto Menescal, Smokey Robinson e Quincy Jones, para dizer alguns, trabalharam na indústria musical. Seriam todos eles “inimigos do artista”, como disse Ed ao justificar sua fala? Raul foi um funcionário da CBS, assim como seu parceiro Paulo Coelho foi na Philips. E muitos outros músicos também foram. Fazer parte da indústria musical nos anos 1970 não era, a meu ver, “ser inimigo do artista”, pelo contrário. Ainda que imperfeita, foi essa lógica que viabilizou o lançamento de inúmeros álbuns importantes da música brasileira, que sedimentaram a nossa arte e que influenciaram o próprio Ed. Sendo assim, me parece incongruente atacar este modelo, especialmente quando um artista passa a fazer parte dele. E Raul não estava mais na CBS quando iniciou a melhor fase de sua carreira.

 

Ed também falou que, musicalmente, Raul Seixas era pobre. Aí é outro problema, bem antigo e típico de formação do entendimento sobre o valor da arte. Ed deve achar que ser bom é tocar muito, conhecer teoria musical e tudo mais, um conceito que ele e muitas outra pessoas cultivam como verdade absoluta, mas que a tecnologia e a própria evolução cultural da sociedade vêm desmentindo constante e sucessivamente. Ed é boa praça, mas mandou mal. Desnecessário acima de tudo, especialmente sobre alguém que morreu há mais de trinta anos e que significa para muitos brasileiros um sinônimo de integridade artística e pessoal. Ed sabia disso quando falou, não mediu palavras e deve arcar com consequências.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Ed Motta mandou mal sobre Raul Seixas

  • 22 de fevereiro de 2022 em 15:37
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    Nunca vi nada de bom na produção do Ed Motta. São músicas pretensiosas e sempre chupadas de algum lugar. Até Manuel é chupada.

    Todo mundo ouve suas besteiras, mas ninguém a sua música, pois é uma merda.

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