“Duna Parte 2” é isso tudo, sim

 

 

Li “Duna” aos quinze anos. Isso foi lá por 1984/85, na esteira do lançamento da versão cinematográfica de David Lynch. Talvez eu tenha me animado a ler o calhamaço de 672 páginas (da sexta edição) por conta do burburinho que o longa havia causado, não exatamente por ser bom, mas por ser, digamos, estranho. Ou melhor, estranhíssimo e isso não se devia à excentricidade notória do diretor, mas porque a saga que o escritor inglês Frank Herbert escrevera, publicando-a primeiramente em 1965, era extremamente complexa. O resultado de “Duna”, de Lynch, ficou naquele setor exótico do cinema, que não é para ser levado tanto a sério e sistematicamente poupado por conta do status de realizador cult que o diretor adquiriu com o tempo. Eu já penso diferente: este primeiro filme é péssimo. É quase uma grande sacanagem com o que está escrito no livro. Um erro, do início ao fim. Esta impressão ficou guardada na minha memória de fã da saga.

 

Ao longo do tempo, acabei lendo todos os outros livros escritos por Herbert: “Messias de Duna”, “Filhos de Duna”, “Imperador-Deus de Duna” (o meu preferido) e “Hereges de Duna”. Ainda falta o último, “Herdeiras de Duna”, que está nos planos e, confesso, já dava por perdida a chance de ver alguma coisa da história adaptada dignamente para o cinema. Houve uma série, produzida pelo canal a cabo Sci-Fi, em 2000, que, por mais que tivesse bom senso, padecia da falta de orçamento e dificuldades de roteiro, indo para o buraco em pouco tempo. Até que veio a notícia do projeto liderado por Denis Villeneuve. O cara tinha escrito e lançado dois filmes praticamente perfeitos: “Incêndios” e “A Chegada”. Um bem bacana: “Sicario”. E um deslize: “Blade Runner 2049”. Tinha saldo positivo de sobra, especialmente porque eu me apaixonei pelo tom minimalista de “A Chegada” e jamais verei “Incêndios” novamente, certamente um dos filmes mais terríveis que eu já assisti. Sendo assim, “Duna parte 1” veio em 2021.

 

As críticas positivas unânimes, os seis Oscars conquistados (Melhor Som, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Edição, Melhor Design de Produção, Melhor Fotografia e Melhores Efeitos Visuais) dentre os dez indicados – incluindo Melhor Filme, credenciaram o projeto de Villeneuve e deram sinal verde para a continuação, que chega agora aos cinemas. Rodado junto com o primeiro, “Duna Parte 2” fecha o arco narrativo do primeiro livro de Herbert, ou seja, os dois “Duna” do diretor canadense, com mais de cinco horas de projeção somados, correspondem a apenas o início da saga. E, creiam, Villeneuve ainda fez escolhas narrativas em nome da concisão e fluidez de seu roteiro. Personagens com relativa importância foram suprimidos ou tiveram sua presença abreviada ao longo dos dois “Duna”. Isso só incomodará – e nem tanto assim – aos fãs dos livros. Os admiradores do bom cinema e da ficção científica mais séria e relevante hão de se esbaldar na sala escura, porque, ainda mais que a primeira parte, “Duna Parte 2” é tudo isso que estão dizendo, sim.

 

Só não é o “melhor filme de 2024” por uma questão simples de cronologia, visto que ainda estamos na primeira semana de março, mas não é nenhum desvario pensar nesta produção recebendo muitas indicações para o próximo Oscar. Tudo o que havia na primeira metade da narrativa ressurge ampliado, mais focado, intensificado e ainda melhor realizado. À medida que os eventos avançam, tal qual uma ópera, “Duna Parte 2” vai ficando mais dramático. Confesso que, nos quarenta minutos finais, fiquei com o coração disparado e completamente imerso em tudo o que via e ouvia. Vejo filmes com bastante frequência e não me lembro de sentir isso por muitos e muitos anos. O resultado, seja técnico, seja narrativo, seja sonoro, seja visual, é acachapante e deve estabelecer um parâmetro muito difícil de ser igualado tão cedo. Porque, claro, além dos recursos técnicos, a história é, por si, impressionante.

 

Pra quem nunca viu nada sobre “Duna” e quer, vá lá, um resuminho: A ação de passa no ano de 10191, num futuro remoto. A humanidade se espalhou por vários mundos ao longo da galáxia e a forma de governo para este território é o Império, que é regido por um pacto. O Imperador governa com o apoio da Guilda de Navegação Espacial, das Grandes Casas de Landsraat e da irmandade Bene Gesserit. Estas instituições são tão antigas quanto o tempo e agem em conjunto ou em separado, de acordo com seus interesses políticos e econômicos. As Bene Gesserit, mulheres com várias habilidades psíquicas e físicas desenvolvidas, atuam de várias maneiras em meio à corte imperial e dentro das Grandes Casas, que são governadas por nobres com títulos e que exercem seu poder em planetas e regiões da galáxia. Este equilíbrio é mantido pelas leis e por uma necessidade inconciliável. A “especiaria”, produzida apenas no planeta Arrakis (Duna) não pode faltar. Ela amplia a consciência, prolonga a vida e torna possível as viagens interestelares. Sem ela, o universo conhecido para e fica isolado, impedindo as transações comerciais e deslocamentos.

 

Sendo assim, quem governa Duna, tem boas chances de exercer força política além das fronteiras do planeta. Ou de ser atraído para armadilhas e traições. É o que acontece com a Casa Atreides, liderada pelo Duque Leto Atreides (vivido por Oscar Isaac no primeiro filme), que recebe a ordem imperial de assumir o controle do planeta, substituindo os governantes anteriores, da Casa Harkonnen. O Duque leva sua família (a concubina, Lady Jessica – a ótima Rebecca Ferguson – e o filho, Paul – Timothee Chalamet) para o planeta, bem como seu exército, assistentes e equipe. Arrakis é um planeta composto exclusivamente por um deserto sem fim, no qual vivem os Fremen, uma população local, que é alvo de ataques sistemáticos por conta dos governantes passados do planeta e vive quase na clandestinidade. Quem governa Arrakis fica responsável pela mineração da especiaria no deserto sem fim. Já seria terrível por conta do calor insuportável e das condições inóspitas, mas, além da areia, há imensos seres cilíndricos habitando o lugar, chamados de Vermes da Areia, ou, segundo a tradição religiosa dos Fremen, “Shai-Hulud”.

 

Este ambiente será o palco de uma imensa traição, que ocorre na primeira parte da história. Sendo assim, a segunda parte pega a narrativa do ponto deixado em 2021. A figura de Paul Atreides, o herdeiro do Ducado, é mais que a de um simples nobre. De acordo com uma velha profecia na mitologia religiosa de Arrakis, um messias virá de fora do planeta para guiar os Fremen em direção ao “Paraíso Verde” e reestabelecer tempos de mais igualdade na galáxia. Os acontecimentos que Paul enfrenta ao longo da história vão aproximando sua figura do mito do Lisan-Al-Gayb, “A Voz do Mundo Exterior” e, à medida em que vai conquistando habilidades ou demonstrando mais destreza nos combates corporais e no alinhamento com a história Fremen – que ele não conhece – Paul Atreides vai assumindo a forma desse messias. E exercendo a liderança junto ao povo. Dessa ascensão e do caos governamental que se instaurou após a tal traição do primeiro filme, uma escalada armada vai acontecendo e as intrigas políticas se movem dentro de a quem interessaria uma guerra no centro de produção da especiaria na galáxia? Sem spoilers, vejam o filme. Leiam o livro.

 

 

 

 

O que dá pra dizer – mais uma vez – é que Villeneuve não deixou nenhum espaço descoberto. Além do primor técnico e narrativo (é dele a adaptação do livro para o cinema), ele tem um elenco estelar. Além dos já citados e de Dave Bautista, Stellan Skarsgaard, Josh Brolin, Javier Barden, entre outros, esta sequência traz reforços de peso. Zendaya, como Chani, o par romântico de Paul, na verdade, uma guerreira Fremen das mais perigosas e cheia de idealismo. É um dos personagens que mais foram transformados pelo roteiro do diretor e não sei se suas escolhas foram as melhores para o resultado final. Mas passa. Além dela, Christopher Walken, como o Imperador Shaddam IV, está no ponto entre o desprezo total pelo que julga estar abaixo dele e pelo ceticismo que se instaura à medida que percebe a vaca indo pro brejo. A Princesa Irulan, papel de Florence Pugh, que tem uma importância enorme para a continuação da história, como a grande responsável por contá-la e assumir papel decisivo no próximo arco em “O Messias de Duna” (que, segundo consta, será adaptado por Villeneuve num futuro próximo) e, mais que todos, Austin Butler, com o maníaco Feyd-Rautha Harkonnen, vivendo o papel que era de Sting na versão de David Lynch, exercendo com gosto uma maldade maníaca e sem qualquer vestígio de moral. Perto dele e de seus parentes Harkonnens, Darth Vader é um escoteiro. Além disso tudo, o filme trata de cultura, devoção religiosa, enfrentamentos e resistência à opressão.

 

Vejam “Duna Parte 2” no cinema. Na maior tela possível. Se der, não marquem compromisso para logo após a exibição. No meu caso pessoal, fiquei algumas horas meio desnorteado com a imensidão que tinha presenciado na sala escura. Se quiserem amplificar o prazer, leiam os livros de Herbert. E boa viagem.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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