Duas Vezes Steely Dan e Donald Fagen Ao Vivo

 

 

Uma das mais apreciadas qualidades do Steely Dan é a precisão matemática com que gravou seus poucos e ótimos discos. Ao todo são nove álbuns gravados em estúdio, num período compreendido entre 1972 e 2003, no qual a dupla formada por Donald Fagen e Walter Becker veio e foi algumas vezes. Por exemplo, entre o sétimo disco, “Gaucho”, de 1981 e o oitavo, “Two Against Nature”, de 2000, foram 19 anos de hiato. E de 2017 para cá, após a morte de Becker, se esperava que o Steely Dan estivesse condenado aos livros de história, mas Fagen resolveu arregimentar boa parte dos músicos que tocavam com eles ao vivo e, como num passe de mágica, cá está o Dan novamente viajando por cidades e festivais do mundo civilizado. Prova disso é o lançamento de “Northeast Corridor”, apenas o segundo trabalho ao vivo do grupo em quase 50 anos de existência. E, para aplacar a fome dos fanáticos, Fagen resolveu gravar uma versão ao vivo de seu irretocável primeiro disco solo, “The Nightfly”, de 1982, com os mesmos músicos e colocar pra jogo na estrada. Daí vem “The Nightfly: Live”, também vendo a luz das prateleiras agora.

 

O fã da dupla não tem do que reclamar, a menos que ele prefira a tal precisão meticulosa dos estúdios. Digo isso porque, ambos os registros ao vivo, são incendiários e surpreendentes. O Steely Dan se transmuta numa usina sonora de improvisação e habilidade técnica que dá inveja em qualquer um. Tudo isso sem abrir mão da complexidade dos arranjos originais, brindando o público com uma bela transfusão de sangue e alma para os originais imaculados. O resultado é sensacional e dá uma senhora prova de sobrevida para Fagen, um monstro da música popular, do qual muitos nunca ouviram falar por aqui. O cara é um purista sonoro, sua voz segue praticamente intacta e sua capacidade de arranjar e pilotar essa versão encardida do Dan ao vivo é admirável. Dá pra dizer que é mérito quase exclusivo dele a condução elegante e malemolente que ele adota para trazer essas canções para o século 21.

 

Em “Northeast Corridor”, o repertório passeia pelos clássicos absolutos da carreira da banda, sem qualquer problema em dar ao público o que ele realmente quer ouvir. E tome versão rapidinha de “Reelin’ In The Years”, que tem 49 anos de idade e segue com tudo em cima e pronta para fazer a delícia dos ouvintes e bailarinos. Outra maravilha, “Rikki Don’t Loose That Number” é outro exemplo de longevidade e distinção. A levada original é preservada em todo o seu esplendor, mas a postura dos músicos, especialmente bateria e piano, mostram que há muito mais em jogo do que a mera repetição do original, que saiu em 1974, no álbum “Pretzel Logic”. O grupo é generoso com o álbum que muitos dizem ser sua obra-prima, “Aja”, de 1977, tocando três canções dele: a faixa-título, a sensacional e fluida “Black Cow” e o groove ensolarado e quase disco de “Peg”. E do disco preferido deste que vos escreve, “Gaucho”, temos a clássica e irretocável “Hey Nineteen”, uma ode ao amadurecimento sem conservadorismo.

 

Se o bicho pega com o repertório do Steely Dan, pasmem, pega ainda mais com as canções de “The Nightfly”. É verdade que o primeiro solo de Donald Fagen tinha muito a ver com a marca sonora clássica do Dan em sua versão do início dos anos 1980 e isso perpassa para a abordagem que os músicos fazem delas neste registro ao vivo. Todas as canções ganham em peso, pulso e texturas e é admirável ouvir várias colisões de universos sonoros em poucos instantes como, por exemplo, na versão de “New Frontier”, um clássico absoluto da música pop, executado com fúria e rapidez, num paraíso de guitarras e metais. O outro hit do álbum, “IGY”, que abre o original e esta versão “live”, também ganha em peso e corpo, soando mais profunda, mantendo sua ironia de um futuro perfeito que nunca chega. As outras faixas menos conhecidas do disco também ganham este sopro de alma e vida, se tornando sensacionais, caso, por exemplo de “Maxine”, que tem sua dramaticidade clássica ressaltada, de “Walk Between Raindrops”, que parece despertar de um longo sono. O groove de “Green Flower Street” e a malandragem jazz’n’blues de “Ruby Baby” também ganham novas e belas cores.

 

Todos esses registros foram feitos entre 2018 e 2019, sendo que os de “The Nightfly” são de uma apresentação no Beacon Theatre, em Nova York, ocorrida em 2019, na qual o Steely Dan também tocou. Ou seja, Fagen fez o set clássico e depois voltou para executar seu álbum original ao vivo, na mesma ordem, sem frescura. Perfeição. Se você nunca parou para ouvir essas músicas das quais o texto fala, sua vida ainda não está completa. Corrija isso agora.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *