Dora Morelenbaum lança primeiro disco solo
Dora Morelenbaum – Pique
34′, 11 faixas
(Uns/Risco)
Dora Morelenbaum oferece o pacote perfeito da música brasileira atual. Tem um incontestável DNA oriundo de artistas importantes, no caso, seus pais, Jaques e Paula Morelenbaum, além de parcerias com Tom, filho de Caetano Veloso e um trânsito com músicos de primeira categoria. E tem uma porção generosa de inventividade alternativa, materializada no grupo Bala Desejo, que divide com Zé Ibarra, Julia Mestre e Lucas Nunes. Com esta configuração, ela vai e vem no que há de mais tradicional na música nacional a partir da Tropicália e dos anos 1970, ao mesmo tempo em que entende a mecânica da música independente, do rock alternativo e tudo mais. Somado a isso está uma identificação total com o Rio de Janeiro, esta cidade que já foi importante em termos artísticos/criativos, mas que, em meio a uma decadência social, moral e material imensa, ainda serve como um referencial importante, sobretudo para os ouvintes de fora do país. Aliás, o público primordial da música de Dora, bem como do Bala Desejo, é o estrangeiro, que não tem a menor ideia de que estes signos, ainda que sejam importantes, pouco ou nada querem dizer no Brasil de hoje. Perto do sertanejo, do arrocha, do pagode, do funk, não há como esse tipo de neo-MPB. Dito isso, “Pique”, primeiro álbum da moça, é belo e enverga uma sonoridade exemplar dentro do que se propõem.
Dora vem lapidando sua carreira solo com determinação, mas sem pressa. Começou em 2020 com o single “Dó a Dó” e adentrou 2021 com o EP “Vento de Beirada”. Tanto num, quanto noutro, Dora investia mais numa música mais voltada para tradições mpbísticas próximas do folk e do jazz mais contemplativo. Canções como “Japão” e a própria “Vento de Beirada” mostravam uma cantora ainda em formação, mas com futuro promissor à frente. A diferença destas produções para “Caco”, o primeiro single de um vindouro álbum, era imensa. Com a presença de Ana Frango Elétrico e sua banda nas funções de produção e concepção sonora, ao lado da própria Dora, deu uma nova luz para o trabalho da cantora. Dá pra dizer que essa associação revelou o melhor que um novo disco de Dora poderia apresentar e este é o caso de “Pique”, resultante desta interação entre ela e Frango Elétrico. O mais notável é que a lapidação de sons retrô que veio somar ao registro original da cantora, acabou por ser o grande charme de álbum, com vários momentos em que ecoam as referências que a própria Frango usou em seu último – e excelente disco – “Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua”, de 2023.
A música de Dora Morelenbaum está muito mais próxima de tons exuberantes e ricos do que de um eventual clima lo-fi. Há espaço até para arranjos com cordas e um tom mais solene, que acontece naturalmente. Suas muitas influências acabam tornando seu próprio som sofisticado, mas, de alguma forma, preserva uma familiaridade com algo da produção da MPB mais pop da virada dos anos 1970 encontraram a tecnologia dos novos estúdios da época e, sob a orientação de produtores mais antenados, como Lincoln Olivetti e Mazolla, gravaram canções e álbuns marcantes. Mesmo assim, a música de Dora é totalmente moderna, totalmente 2024 e surge como “nova onda brasileira” para esta audiência gringa a que nos referimos acima. Em alguns momentos, soa exótica como a canção de abertura, “Não Vou Te Esquecer”, que tem um acento sexy no canto e no jeito como o arranjo apresenta as possibilidades, especialmente de guitarras e harmonias. Por sua vez, “Essa Confusão” tem mais proximidade com a tal parte orquestral mencionada acima. Parece uma versão mais misteriosa da Gal Costa mais pop de “Folhetim”, não a tropicalista.
Esse pop de espaço aberto que revestiu a MPB oitentista surge glorioso em “Venha Comigo”, que ostenta um balanço funky à toda prova. A letra fala em largar tudo por um instante – “Sejamos imprudente, vamos pro Ceará”. “A Melhor Saída” tem uma pegada mais reggae no arranjo, mas isso acontece de um jeito quase imperceptível, lembrando um pouco as misturas que Céu fazia no início de sua carreira. Guitarrinhas em wah-wah dão um ar retrofuturista psicodélico que adorna sutilmente o arranjo. “Caco”, que surgiu como single há algum tempo, é uma baita canção, que comunga jazz, pop e se configura como um dos grandes acertos de Frango Elétrico na produção ao longo do álbum. Falando em jazz, “VW Blue” é um instrumental com menos de dois minutos em que a banda que acompanha Dora soa como uma versão despojada do Azymuth da virada dos anos 1970/80, o que é um baita elogio. “Petricor” é um dos momentos vocais mais belos de “Pique”, enquanto “Nem Te Procurar”, faixa de encerramento, é um pequeno twister funk pop que funciona lindamente.
Dora Morelenbaum tem muito caminho pela frente mas já dá pra dizer que está indo muito bem. Com agenda de shows lotada na Europa e no Brasil até o fim do ano, ela pode e deve ser mais conhecida do público. Bom disco.
Ouça primeiro: “Caco”, “Nem Te Procurar”, “Essa Confusão”, “Petricor”, “Não Vou Te Esquecer”, “Venha Comigo”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.