Do Ruído nas Esferas ao Verão Tardio de Luís Ruffato

 

 

Em outros tempos, a essa hora, talvez fosse feliz.

 

Desenganado com parcimônia pelo médico que não lhe dera mais que seis meses de vida, Oséias, Zézo para a família, chamado Peninha pelos amigos, mineiro de Cataguases vivendo em São Paulo há cerca de 35 anos, quase 20 dos quais sem retornar à cidade natal, desde a morte dolorosa da mãe com um câncer fulminante no pâncreas, que não retornara sequer para velar o pai, dois anos depois, amanheceu inesperadamente na rodoviária numa terça-feira abafada de março, verão quase outono, tempo improvável nesse país de duas estações. Abandonado pelo mulher infiel e pelo filho de que prefere não falar, vivendo no limite da miséria com o que lhe coube do fundo de garantia pela demissão do emprego, planeja alguns encontros, quem sabe para uma despedida ainda decente desta vida. Reencontra o glamour nostálgico e a faina triste e sem remissão das irmãs Zana e Isinha, a riqueza ausente do irmão Jôjo, vendo-se às voltas com uma memória que ninguém deseja partilhar, que todos preferem evitar, dos desencontros entre a mãe e o pai, cujos partidos acabavam distribuídos pelos filhos, e da irmã Ligia, a propósito de quem guardava um segredo, vou logo dizendo que é para não alimentar enredos: foi ele quem lhe revelou a existência da arma, o revólver com que tiraria a própria vida, aos 15 anos. Para além dos planos, reencontra pessoas de quem já nem sabia que se lembrava – Marcim, amigo de infância e atual prefeito, de controversa conduta pessoal e política; Marilda, a primeira namorada há tanto tempo esquecida; o antigo professor Mendonça, de Educação Artística, que apanha de uns meninos que convida para entrar na casa pobre da periferia. Logo logo Peninha irá descobrir que, entre minúsculas reminiscências e fragmentos de um passado que teima em emergir, não tem família nem amigos, que de Cataguases não restou sequer uma fotografia na parede, que não produz senão memórias de um mundo distante, que talvez nunca tenha existido. Do ângulo que observa, rente ao cotidiano empobrecido e violento, Cataguases está feia, suja e fedendo a mijo, tomada pelo barulho do trânsito, pelo tráfico de drogas e pela balbúrdia de camelôs, nada que lembrasse o ambiente bucólico da cidade que percorrera na infância, sem limites para as aventuras das pernas magras movendo as rodas da Caloi verde. Que trilha sonora seria coerente com o desalento, esse desequilíbrio entre o macro e o microcosmo? No passado, Ray Conniff e as músicas românticas que o pai gostava de ouvir nas manhãs de domingo, na grande radiola valvulada Philips (Nelson e Orlando Silva, Sinatra e Johnny Mathis); a mãe preferia o bate-pau da folia de reis, senão, na companhia de Isinha, a voz anasalada daquele outro rei, Roberto Carlos; Lígia sempre com Chico Buarque, Caetano e Milton. Num tempo intermediário, talvez Cranberries (Dreams: Oh, my life changing every day), quem sabe para reacender a chama improvável do reencontro com Marilda e abafar a música-tema de Star Wars ecoando no celular dela. Hoje o funk (as novinha tão sensacional / descendo gostoso, prendendo legal) misturado aos hinos evangélicos, a música sertaneja no mais alto volume ocupando os espaços públicos, o alarido ecoando tarde da noite no trêiler Cachorrão do Léo. Trilha para tribos agitadas e em pé de guerra na selvageria de um mundo vivendo já o dia seguinte, esse em que Oséias, o Zézo de inútil intimidade, o Peninha de amigo nenhum, já pode morrer… sem paz. Não fosse tudo isso literatura, e da boa, dessas de tirar o sono, narrada em primeira pessoa pelo nosso (anti)herói, que limpa sistematicamente as lentes dos óculos com a fralda da camisa, entre uma terça-feira, 3 de março de 2015, e o domingo seguinte, 8, em capítulos diários para leitura de quem puder manter a respiração suspensa ao longo de cada parágrafo único que percorre o dia. Ah, se pelo menos a vida também fosse assim, literatura da boa, ou se no fim de tudo, depois de todos os nossos descaminhos, antes que nos perdêssemos na escuridão da mata, ainda existisse a mãe tirando o chinelo, agarrando pelo braço, aplicando uma coça e pondo de castigo o resto do dia, enclausurado no quartinho dos fundos…

 

 

OBS: texto escrito no mesmo estilo do autor, em parágrafo único

Everardo Andrade

Everardo Andrade é doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense e Professor Associado do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFF, e do PROFHISTÓRIA.  É vice-coordenador do CDC - Grupo de Pesquisa Currículo, Docência & Cultura, da Faculdade de Educação da UFF,  brizolista histórico, rubro-negro e boa praça.

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